30.10.06

delírios & brotoejas

Segunda-feira de sol, e calor.

Enquanto isso, na Sala de Justiça...

Febre, muita febre. As correntes subterrâneas de lava em ponto de erupção. Em ponto de ebulição. Em ponto de bala. Brotoejas.

Ontem: um domingo sísmico. A ponto de explodir, ou implodir. Terremotos internos, desabamentos. Lois Lane afundando na falha de San Andreas em Superman 1.

(Cadê o Kal-el pra me salvar? Ah, esqueci: ele caiu do cavalo, ficou paraplégico e até já morreu. E a última notícia que tive da Margot Kidder foi quando ela fez uma participação especial em Smallville. "Santa senilidade, Batman!")

Mas NÃO vou desistir. Pra Pequenópolis eu não volto nem amarrada. Eu sei o trabalho que deu chegar aonde estou.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira.

Vou ali buscar um martelo pra derrubar este muro de kriptonita e já volto.

26.10.06

uma galinha

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"Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."

- Clarice Lispector, in “Laços de Família”

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ilustração: alan mcniel, "sleeping chicken"

("A série das galinhas começou quando vi um bando de galinhas ser arrebatado por um pé-de-vento e lançado pelos ares. Depois de pintar alguns rodamoinhos, comecei a me interessar pela imagem de galinhas aconchegadas, dormindo tranquilamente enquanto o vento sopra lá fora." - Alan Mcniel)

24.10.06

perpétuo socorro

(flores alienadas)

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Subia as escadas carregada.
Mas rasgaram minhas sacolas repletas de sonhos
e antes que me pudesse acudir
no escuro s’esparramaram todos.
Entredentes escapou um grito tardio.
Seus ecos me beliscam ainda, no silêncio, e me despertam.
E me confundem, pondo-me à busca urgente
(e às cegas pela casa escura)
de atender seu apelo inútil.

(Sampa, 19-20/11/1996)

23.10.06

insônia

Alta madrugada. Os grilos lá fora, o tique-taque do relógio da cozinha, o zumbido da geladeira. Será que tem mais alguém acordado a essa hora.

(Talvez uma velhinha, fitando com os olhos remelentos de incompreensão uma rachadura inexistente no teto sobre a cama, esperando resignada que os minutos passem, um por um, até começar a clarear e sua acompanhante perceber que ela não está mais dormindo.)

E. ressona ao meu lado e resmunga qualquer coisa. Está dormindo a sono solto: que inveja... Um vizinho dá a descarga – alguém que levantou pra ir ao banheiro, mas vai voltar pra cama e dormir outra vez. O gato dorme no sofá; suspira.

Os móveis não passam de silhuetas na penumbra. Todas imóveis - ou pelo menos é o que parece.

Um mosquito começa a zumbir no meu ouvido. (Saco.) Cubro a cabeça com o travesseiro - como é abafado aqui embaixo. Talvez fosse melhor acender logo a luz e ler um pouco – mas estou cansada demais pra isso, sei que as letrinhas vão embaralhar todas na minha frente. Os algarismos vermelhos no relógio digital vão se sucedendo implacavelmente: 1:24. 2:10. 2:11. Quantas horas eu vou dormir? De 2:10 até as sete são uma, duas, três... Sete não, pode ser sete e meia. Cinco horas e...

Amanhã não posso esquecer de comprar pasta de dente na farmácia. Papel higiênico também; acho que só tem mais um rolo.

Será que o mosquito desistiu? Arrisco tirar a cabeça de debaixo do travesseiro: aah, ar fresco, que bom.

2:47. Este lençol está ficando velho, tá cheio de bolinhas. (Ocorre-me: é tênue a linha que separa o lençol velho "no ponto" daquele que começa a ficar com bolinhas.) Quem sabe se eu meditar um pouco: procuro me concentrar na minha respiração. Ar que entra, ar que sai, ar que entra, ar que sai, ar que entra... A temperatura está caindo de novo.

Será que amanhã vai continuar chovendo?

3:02. Que coisa: tem gente que dorme com o ar condicionado ligado mesmo neste frio.

Passou um carro de escapamento aberto na rua.

3:18.

Começo a sonhar. Até que enfim.

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ilustração: s. dalí, "nature morte vivante", 1956

leituras


O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar as mãos na água; o agricultor lendo o tempo no céu – todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres humanos – a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo – ou pelos deuses – o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso.

E, contudo, em cada caso é o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.

- Alberto Manguel, "Uma história da leitura"

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ilustração: g. richter, "reading", 1994

19.10.06

iniciáticos

sonhei que me retalhavam em postas, depois juntavam os pedaços todos e crescia uma árvore imensa, imensa, imensa, de tronco grosso, galhos fortes, sombra generosa, que subia até o céu. então veio uma tempestade; o céu ficou cor de chumbo, o vento gritava furioso, e as gotas da chuva que caiu feito uma cortina d'água doíam de tão pesadas. acordei com a imagem daquela árvore tão imensa se sacudindo, batida pelo temporal, rangendo e gemendo como se sofresse.

mesmo acordada, ainda dava pra sentir a sua dor; de onde eu estava, ainda ouvia o seu lamento.

aí, lembrei das muitas tempestades da minha infância, do vento assoviando nas frestas das janelas daquele mesmo jeito, do barulho de portas batendo com força ao longe; e pensei neste inverno que não acaba nunca...

levantei, lavei o rosto, prendi o cabelo, calcei minhas meias para proteger os pés da friagem dos azulejos e fui para a cozinha fazer café.

desde então, meu coração parece que está lá fora em algum lugar, na chuva. não sei se está sozinho, com medo e com frio - mas o fato é que saiu, e não voltou até agora.

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("Tinha medo de enlouquecer, ao passo que dois milênios antes os homens ter-se-iam alegrado imensamente com semelhantes sonhos, na certeza de que representavam o prenúncio de um renascer do espírito e de uma vida renovada. Mas nossa mentalidade moderna olha com desdém as trevas da superstição e a credulidade medieval ou primitiva, esquecendo-se por completo de que carregamos em nós todo o passado, escondido nos desvãos dos arranha-céus da nossa consciência racional. Sem esses estratos inferiores, nosso espírito estaria suspenso no ar."

- C. G. Jung, in "Psicologia e Religião")


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Resistência
Então o que me resta agora
é juntar os cacos do meu coração suicida
que me pula do peito afora
corre contra a primeira parede e se espatifa
só pelo prazer de levantar
sacudir a poeira
e dar a volta por cima.
(1996)

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ilustração: p. cézanne, "le grand pin"

16.10.06

uma carta: fragmentos (ou: a arte de fazer resumos)

(burlesco familiar)
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Leitura dinâmica de uma carta de quatro páginas em Arial 10:
Subtexto
Espero que você esteja olhando os seus e-mails. Lamento profundamente por tudo o que já falei ou fiz. Sei que você está muito ocupado - desde a última vez que conversamos. Eu jamais me meti sem que alguém houvesse pedido. Acho compreensível e bonito o seu gesto, mas sinto-me profundamente afrontada. Realmente, você não tem noção. Mesmo não devendo satisfações a ninguém. Ela em geral só me procura para pedir alguma coisa - além das suas ocupações atuais. O que não sei se você sabe é que sempre digo e repito que eu gostaria muito de almoçar com você, suponho que por falta ou de tempo, ou de vontade. Afinal, eu também poderia tomar essa iniciativa. Não se trata de queixas ou acusações, acredito que ela já tem maturidade mais que suficiente. Eu simplesmente não tenho sabido como resolver. Pelo menos, um diálogo do tipo que eu conheço e que, na verdade, lamento muito e [do] qual me arrependo. Só por isso ainda não tomei a iniciativa de procurá-la: me falta coragem. Não conheço outra alternativa e, sinceramente, isso me desespera. E, pior, nos dois casos ela está convencida. Eu não ligo. Queria muito descobrir uma maneira de passar por cima do seja lá o que for que eu esteja sentindo ou de quaisquer que sejam os meus motivos. Isso não passa pela sua cabeça nem por um instante sequer? Nada mais interessa? Vai indo tudo aparentemente muito bem porque eu me afasto, porque eu não a amo. Preciso às vezes manter uma certa distância com todo mundo. Ela fala muito do que ela precisa porque não há negociação possível. E, no entanto, eu hoje acredito. Simplesmente não sei o que fazer se eles forem de algum modo contrários, e eu que me dane. Não tem outro ou. Não consigo encontrar uma solução. Era poder conversar sobre isso. Só posso falar por mim. Será que o desejo dela é grande o suficiente? Será que o amor dela por mim? Ou será que não interessa? Eu tenho que fazer das tripas coração, e não uma boneca. NÃO É CAPAZ DE ME ENXERGAR? NÃO LEVA EM CONSIDERAÇÃO? Hoje, essa é a minha maior limitação: está além da minha capacidade descrever no sentido de superar isso. Apesar de todo o seu amor por mim. Hoje eu ainda tenho pavor, na expectativa de que eu "conserte" as "falhas". Sou EU a ÚNICA responsável. Ela continua não sendo capaz de cogitar que provavelmente está além da compreensão além de mim mesma. Absoluta incompreensão desta família. Como se eu não existisse, mesmo que "me enxergar" seja algo. Você não tem idéia do quanto isso é foda. Sabe do que mais? Se coloque no meu lugar e tente: como é que você ia QUERER se aproximar? Esse é um dilema que me assombra: o que quer que eu faça, ter que viver com esse peso. Sei que devo ter sido confusa; peço desculpas, mas muito obrigada por ter lido até o final e me telefonado hoje. Pela primeira vez consegui. Sou uma pessoa muito "dramática", beirando o farsesco. Lamento muito.
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Dadaísmo pouco é bobagem.

15.10.06

auto-retrato

Revirando as minhas coisas em busca de um cacareco qualquer, encontrei outro dia no fundo de uma gaveta um antigo auto-retrato 3x4, tirado no início do século passado num daqueles fotógrafos lambe-lambe de praça.

Eu usava um macacão de cetim, branco com bolotas azuis, calças e mangas bufantes, com um tutu de filó no pescoço; minha coluna vertebral descrevia uma curva e pendia para o lado, o tronco sanfonado qual uma mesura de arlequim. A cabeça, com um parafuso a menos, estava desenroscada do pescoço e flutuava, quilômetros acima do resto, presa por uma fitinha vermelha amarrada com um laço ao meu pulso esquerdo. A moleira, pronunciada, claramente visível. Olhando para baixo, eu avistava, por entre as nuvens, as minhas pernas – dois cambitos – com meus pés no final, enterrados em lustrosos 752 pretos da Vulcabrás quatro números maiores, que sambavam como chinelos.

Na mão direita, minha varinha de marmelo para autoflagelação.

No rosto, o nariz vermelho, as maçãs com duas bolas rosadas, os óculos retangulares para quebrar o redondo em excesso e o sorriso forçado, à guisa de máscara e mordaça.

Recentemente, contam-me, um chef especializado em frutos do mar explicava num documentário como escolher bons peixes no mercado. Segurando o dito pelo rabo e deixando-o pender no ar, à mercê da gravidade, aquele que não é fresco, impróprio para consumo, mostra-se molengo, largado, hipotônico. O peixe fresco não, é rijo e teso – atenção, não confundir com peixe congelado, que é duro feito pedra e quebradiço como gelo. O peixe fresco é firme: hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.

Deparar-me com aquele corpo sanfonado e tombado para o lado me fez pensar na minha espinha dorsal, no meu tônus muscular, na qualidade da minha pele e em como preciso que eles estejam vivos e vigorosos e vigilantes para eu não virar uma minhoca na lama nem, pior, uma sardinha velha conservada em óleo, imprensada com uma dúzia de outras dentro de uma latícula numa gôndola qualquer do supermercado da esquina.

14.10.06

travessia


Meus olhos se fecham
Sobre meu ombro se abate a noite
como chumbo
Perambulo na escuridão
em busca dos sonhos perdidos
Meus cabelos molhados se espalham
por quilômetros ao redor
e se embaraçam às estrelas que flutuam
sobre o abismo
Mas tudo o que sinto é o meu cheiro
- e farejo meu próprio rastro feito náufraga
à deriva nas águas espessas
Singrando meu desalento (imundo)
até raiar o novo dia
sobre meu peito
adormecido

30/05/2004

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pela primeira vez fico alguns dias em silêncio neste blogue e aí venho e solto um petardo desses? ainda mais depois de um post "fofo" sobre free hugs e tal? tsc, tsc, tsc - puxa vida.

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(é que às vezes vulcões em erupção têm uma fase gelada.)

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foto: windshield rain, genevieve shiffrar

8.10.06

banho-maria

Tenho sentido um cheiro de mistério no ar, uma sensação de iminência. Ao mesmo tempo, uma necessidade irresistível de ficar quieta na minha concha. Como se este frio, esta chuva, esta umidade me dessem ganas de hibernar.

Como será que se sente uma semente enfiada na terra?

E entretanto, apesar da calma aparente, tenho uma sensação surda de torrentes de lava deslocando-se lenta mas inexoravelmente no subsolo. Poderosamente. O vulcão lá, parecendo adormecido; os pássaros voando tranqüilamente sobre a cratera, fazendo seus ninhos, cuidando da vida; os boizinhos pastando na encosta, as borboletas pra lá e pra cá, as moscas zumbindo, os aldeões locais cuidando das plantações... Mas a lava lá, no subsolo, o magma em correntes lentas, e poderosas, e inexoráveis. Toda a força da natureza em estado bruto e latente. O que vai acontecer? Quando? É um mistério. Mas que vai acontecer, em algum momento, ah, isso vai.

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É como se eu estivesse cozinhando lentamente em fogo brando - em banho-maria.

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Tenho passado meus dias em estado de reticências...

5.10.06

estrangeira

Je crois qu'il profita, pour son évasion, d'une migration d'oiseaux sauvages.
("Creio que ele pegou carona, para partir, com uma migração de pássaros selvagens")

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Outrora eu era daqui,
e hoje regresso estrangeiro,
forasteiro do que vejo e ouço,
velho de mim.

Já vi tudo, ainda o que nunca vi,
nem o que nunca verei.
Eu reinei no que nunca fui.

- Bernardo Soares, "Livro do desassossego"

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um grande silêncio.
desligaram o interruptor.
blecaute.
só o barulho do vento lá fora,
o som das folhas mortas varrendo o chão.

depois de acordar ontem com insônia
às 3:24 da manhã
- sim, está tudo bem, mas
estou em recesso.

4.10.06

as idades de zenóbia

"Aos dezoito anos, Zenóbia tinha olhos ávidos e não usava óculos. Os cabelos, de um preto instável, pendiam em breves ondas sobre os ombros. Seu corpo magro lhe impunha uma fragilidade que não tinha. Sorria sempre como se escondesse a face sob as sombras.

Aos trinta e dois anos, Zenóbia tinha olhos óbvios e ainda não usava óculos. As maçãs do rosto, de um rosa rubro, quase que encobriam o nariz miúdo. Os cabelos, reclusos. Uma linha – quase ruga – trazia à testa um ar de austera brandura. Mas nenhuma dureza no conjunto, nenhum escuro.

Aos quarenta anos, Zenóbia tinha olhos sóbrios e passou a usar óculos com aros de tartaruga. Os cabelos, curtos. O risco na testa, agora um sulco. Seu vulto era raro. O sorriso esquivo: seu ponto de fuga. Uma incerta elegância a tomava, quase absurda

Aos cinqüenta e oito anos, Zenóbia tinha olhos sólidos, sob os óculos de lentes turvas. No susto da idade aprendeu que ainda era cedo e quis experimentar tudo. Nos cabelos cinza, nenhum sinal de pejo. Imune ao peso do mundo, ela parecia não ter culpa ou medo.

Aos setenta e quatro anos, Zenóbia tinha olhos estóicos por detrás dos óculos de hastes curvas. Trazia o cabelo de nuvem rente à nuca. E apesar do luto, não perdia o lume. De tudo, mesmo das coisas soturnas, sabia extrair o sumo. Sua vida era o resumo de seu nome. Todos diziam que não morreria nunca.

Aos oitenta e dois anos, Zenóbia parece ter setenta e quatro. Os olhos, sob as lentes sem aro, estão ilágrimes. Os cabelos, ralos, de um branco insone. Já não há dor ou noite para a sua alma, é claro. Na aura da idade, já sabe quase tudo. E todos já pensam que ela é um milagre. Ou um sonho."


- Maria Esther Maciel, "O Livro de Zenóbia"

3.10.06

janelas

("ouro preto: homem e mulheres na janela")


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"Le véritable voyage ne consiste pas à découvrir de nouvelles contrées avec notre regard habituel, mais à developper un nouveau regard sur nos contrées habituelles."

("A verdadeira viagem consiste não em descobrir novas terras com o nosso olhar habitual, mas em desenvolver um olhar novo sobre as nossas terras habituais.")

- Marcel Proust

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pra inspirar um bom começo de semana... :-)

1.10.06

faxina

Sabático
Xampu na cachola:
fazer muita espuma
esfregar de escovão
tanto tutano
Condicionador:
desembaraçar dendritos
pente fino pra catar piolho
dos axônios
Limpar com cotonete
as dobrinhas do cérebro
Lavar com água abundante
e sabão neutro
Enxaguar
Secar à sombra

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"cuidado com a cuca
que a cuca te pega,
te pega daqui,
te pega de lá"

máscara

(mordaça)
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Lavar o rosto
molhar o gesso
que me cobre a cara
e degluti-lo
aos bocados
digeri-lo
mole,
como miolo
de pão.

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Eu agi sempre,
Eu agi sempre para dentro.
Eu nunca toquei na vida.
Nunca soube como se amava…
Apenas soube como se sonhava amar.

Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos,
é que às vezes eu queria julgar que as minhas mãos eram de princesa.
Gostava de ver a minha face reflectida,
porque podia sonhar que era a face de outra criatura.

- Bernardo Soares, "Livro do desassossego"