13.3.09

Largada no colchão, sonhando com tubarões e crocodilos, ela dorme a sono solto

Largada no colchão, sonhando com tubarões e crocodilos, ela dorme a sono solto — sem perceber que o fio d’água que escorre da torneira (da cozinha? ou do banheiro?) se acumula na pia, transborda e empoça. E escorre mansa pelo chão, inundando lentamente banheiro, corredor, quarto, acumula-se ao redor do colchão, agora transformado em ilha, e põe-no a flutuar, virado então em jangada.

O colchão-jangada desce a correnteza levando-a inconsciente, quase encalha na porta da cozinha, mas passa com um solavanco; até que, na pequena área de serviço, desaparece com o aguaceiro pelo ralo sem tampa perto da porta.

10.3.09

Enquanto isso, dia após dia eu me enfiava entre as raízes da velha árvore

Enquanto isso, dia após dia eu me enfiava entre as raízes da velha árvore e lá ia visitar minhas quimeras subterrâneas. Já não me contentava em acompanhar suas vidas de longe, porém; havia algum tempo que eu tinha me atrevido a abandonar meu cobertor de musgo e me introduzir em seu meio. Assim visitei as cidades de ouro e prata das quais conhecia antes apenas os muros, e vi por dentro palácios e estrebarias, cozinhas e salões. Cheirei as réstias de alho dependuradas, os afiambrados, os molhos de arrudas e outras ervas; cheirei o estrume dos mais magníficos cavalos, a madeira envelhecida dos balcões, cortinas de seda esvoaçantes e a fedentina das sarjetas. Percorri também os campos e florestas entre tigres-dentes-de-sabre, manadas de cervos de chifres dourados e unicórnios, dragões adormecidos e carpas encantadas; e hamadríades. Surrupiei ovos dos ninhos e compotas das prateleiras. Corri mundo — e a cada passo do caminho eu crescia e encorpava — afastando-me, passo a passo, da infância deixada para trás.

1.3.09

cântico negro

"Vem por aqui" – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
– Sei que não vou por aí!

- José Régio