18.8.08

E foi então que aconteceu

E foi então que aconteceu.

Abri a porta e senti que a sala cheirava a ovo e borracha queimada. O papel de parede (tinha sido verde um dia) não passava de uma lembrança desbotada sob a poeira em crosta e caleidoscópios de bolor. Contrastava com a limpeza sem lustro dos móveis cafonas, singularmente despojados de qualquer enfeite ou mimo. A impessoalidade e o ecletismo da decoração conferiam ao apartamento um aspecto de depósito, ou de um cenário armado às pressas especialmente para a ocasião.

Junto à mesa de jantar, de costas para mim, uma mulher alimentava o filho num cadeirão de bebê. De onde eu estava, seu cabelo desgrenhado parecia sujo. Ela não desgrudava os olhos de um televisor preto e branco, embora a interferência fosse tanta que as imagens eram irreconhecíveis e o som não passava de uma chiadeira de ensurdecer. Enfiava a sopa roboticamente na boca do menino, sua roupa coberta de manchas, às colheradas.

O menino olhou-me com olhos inteiramente vazios e negros. Era a encarnação de todo o mal que já grassou no universo em todos os milênios e milênios da história passada, presente e futura. Fui tomada por um pavor medonho, senti-me desfalecer.

Ele sorriu. E o sorriso também era negro e vazio. Dentes pontiagudos de predador.

O pavor tornou-se um desespero que eu já não tinha como suportar. Se aquele mal me tocasse eu derreteria e ficaria para sempre imersa na água a ponto de congelamento, suas garras enfiadas na minha garganta. Melhor não existir mais, e atirei-me pela janela na esperança de escapar. Não de sobreviver, mas de não sentir mais.

Estava caindo de costas e vi o momento exato em que ele pulou atrás de mim, braços estendidos na minha direção, sorriso estampado no rosto, aproximando-se cada vez mais rápido, muito mais rápido do que eu caía, e entendi. Ele me alcançaria antes que eu chegasse ao chão.

Eu preferiria dizer que o medo foi imenso e fechei os olhos com força, com toda a força – quando abri, estava deitada de madrugada na minha cama, ainda com a recordação da queda vívida no meu corpo. Preferiria dizer que, angustiada, acordei a pessoa ao meu lado e passei as duas horas seguintes sendo consolada e protegida, sufocada pela sensação de iminência, de que ele surgiria na porta a qualquer segundo e só esperava para me torturar mesmo. Preferiria dizer que acabei conseguindo conciliar o sono outra vez, exausta, embora desde então tenha me viciado em pílulas para dormir e só consiga atravessar as noites com uma luz acesa na cabeceira.

(Mas a verdade é que ele me alcançou mesmo antes que eu chegasse ao chão, me abraçou, e, hoje, minha alma não me pertence mais.)

8.8.08

Houve o tempo em que o mundo era perfeito

“Houve o tempo em que o mundo era perfeito; um vale verdejante atapetado de flores, recortado em arabescos caprichosos por um ribeirão de águas claras; passarinhos e borboletas em profusão; coelhinhos e esquilos saltitantes; e pôneis de todas as cores. O céu imenso e azul; e as nuvens eram flocos brancos de algodão que vez por outra até choviam, mas a chuva era mais um folguedo de verão. E havia o arco-íris.

“Corria ao sol, descalça na grama, um vestidinho curto estampado, e dançava e brincava com uma mulher vasta e bela a quem chamava ‘mãe’. Seu riso desenhava covinhas nas bochechas e fazia-lhe cócegas na barriga; o colo era um ninho macio onde adormecia acalentada e plena, entre bocejos de satisfação.

“Até que, num canto remoto do vale, desabrochou uma estranha orquídea. Atraída primeiro por seu aroma, intrigou-a a flor de tão exótico aspecto; aproximando-se, percebeu entre suas pétalas um brilho sutil, e tocou-as – e a orquídea derramou entre seus dedos uma pequenina chave dourada.

“Correu a compartilhar com a mãe a descoberta. Para sua surpresa, porém, notou que, pela primeira vez, ela não parecia feliz.”

Na manhã seguinte, acordei com frio – e sentia frio pela primeira vez, trazido pelo vento cortante e pelo céu, carregado e baixo. Da noite para o dia, a vegetação estava ressequida e murcha, as folhas secas descreviam rodamoinhos no ar, o chão era só poeira e pedregulhos. Havia lajes e lápides de cimento espalhadas (eu que não conhecia o cimento até então, e como me amedrontou a aspereza!), e tufos de espinhos pontilhados – como gotas – de minúsculas flores vermelhas, e estátuas de pôneis, passarinhos, esquilos e coelhos por toda parte; e não compreendi que eram os habitantes do vale, petrificados.

As cores estavam agora esmaecidas pela luz difusa e cinzenta.

Percorri o jardim de fósseis até avistar, sobre uma mesa de concreto, dentro de um esquife de cristal, minha mãe adormecida, um ramalhete desbotado entre os dedos.

Ia chamá-la quando um cavaleiro de armadura refulgente despontou numa curva logo adiante, e veio em minha direção. Tomou-me gentilmente em seus braços, fez um gesto mágico com uma das mãos, e – plim, um imperceptível brilho de purpurina no ar e uma das touceiras engelhadas tornou-se, num piscar de olhos, um trono encantado, de ouro e pérolas luzidias, onde o cavaleiro me acomodou.

Exausta, depositei em sua palma estendida a chave que guardava ainda em minha mão direita. Senti meus olhos pesarem irresistivelmente enquanto uma bruma esbranquiçada descia sobre nós. Ainda julguei distinguir em meio à neblina, antes de mergulhar num sono sem sonhos, o cavaleiro cobrir com um corte de veludo negro o ataúde.

Tomara que me levasse logo dali.

7.8.08

Minha madrasta me escondia entre os dentes

Minha madrasta me escondia entre os dentes, embrulhada como um casulo em sua língua comprida, pegajosa e fina. Entretinha-se usando-a para fazer-me de pião; mas servia-lhe também de coleira e chibata, com a qual me submetia a uma pesada rotina de trabalhos forçados.

Já jovenzinha, aproveitei-me um dia de seu sono profundo e, de um só golpe, desvencilhei-me da língua, preguei-a no umbral da janela e, atirando-a para fora como um rolo de corda, desci por ela a parede da alta torre em que vivíamos.

Quando saltei ao chão, ainda ouvindo as súplicas e imprecações da megera, disparei a correr a toda a velocidade que me permitiam minhas perninhas atrofiadas. Na fuga, um circo mambembe me recolheu. Aqui encontrei casa e comida, aqui fiz meus primeiros amigos; levo uma vida nômade que muito me agrada, e sou paga pelo meu trabalho: entro todas as noites no picadeiro e exibo, no espetáculo de aberrações, minha espantosa habilidade para emitir silvos agudos, quase ultra-sônicos.

Embora até hoje os uivos de minha madrasta ecoem nos meus ouvidos e me despertem toda noite, evidenciados pelo silêncio das madrugadas.

1.8.08

Assim constatei que meu corpo é feito de fluidos

Assim constatei que meu corpo é feito de fluidos. Água. Sangue. Linfa. Bile. Pensamentos — os pensamentos jorram da minha gelatina mental. Tenho idéias exclusivamente aquáticas nas quais mergulho e, uma vez nesse estado de submersão — e daí à falta de ar e ao quase afogamento. Meus devaneios constituem toda uma flora e fauna submarinas, abissais, cheias de bichos que parecem plantas, plantas que parecem bichos e aqueles peixes de olhos bugalhudos, dentes aguçados e tão grandes que nem cabem em suas bocas ridículas e umas fosforescências de boate, luzes negras e néons pendurados em rabichos que saem de todo o corpo feito tentáculos, balangando, e são iscas para atrair suas presas – verdadeiras mariposas subaquáticas, estupidamente atraídas pela luz.

Minha cabeça é o aquário dos sonhos da família Adams.