28.2.07

me saiu de sopetão no meio de uma enxaqueca em plena madrugada


Efeito dominó

Acordo baratinada e sinto
que me saltam arruelas e molas das orelhas,
parafusos e porcas em profusão
e caraminholas, minhocas e caracóis aos tufos
transformam meus cabelos em cachos
banais.

Meus cílios tremelicam suspensos
distribuindo beijinhos de borboleta no ar
simulando multidões de meninas-dos-olhos,
bisbilhoteiras e
invisíveis.

As pálpebras permanecem fechadas para balanço.

Vaga-lumes assistem a tudo de arquibancada
encarapitados na folhagem do jardim,
mordiscando biscoitos em silêncio, apagados
e incólumes.

24.2.07

frase do dia

Depois de um dia inteiro estudando com as colega, o cansaço opera maravilhas:
- Aaah! Agora eu entendi: então, o três fica exatamente entre o dois e o quatro!
Diante da gozação generalizada, a pessoa tenta se explicar, mas claro que sai pior a emenda que o soneto:
- Não, gente, assim: é que ele vai e volta; quando vai, chega no quatro, quando volta, vem pro dois.
Explosão de gargalhadas. A amiga tenta consolar:
- Deixa pra lá. É que o óbvio às vezes fica sem sentido mesmo.

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amo vcs. :-)

atenção ao sábado

Acho que sábado é a rosa da semana; sábado de tarde a casa é feita de cortinas ao vento, e alguém despeja um balde de água no terraço; sábado ao vento é a rosa da semana; sábado de manhã, a abelha no quintal, e o vento: uma picada, o rosto inchado, sangue e mel, aguilhão em mim perdido: outras abelhas farejarão e no outro sábado de manhã vou ver se o quintal vai estar cheio de abelhas.

No sábado é que as formigas subiam pela pedra.

Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.

De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana.

Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?

No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.

Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.

Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.

Domingo de manhã também é a rosa da semana.

Não é propriamente rosa que eu quero dizer.

- Clarice Lispector, in "Para não Esquecer"

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ilustração: S. Dalí, "Rosa Meditativa"

21.2.07

lagartona preta

acordo de madrugada e ainda tateio a mesa de cabeceira à procura dos óculos, mesmo passados quase três meses desde a cirurgia corretiva da miopia. a silhueta preta do meu gato preto arrasta-se no escuro preto da moldura da porta do banheiro feito uma lagartona de kafka ou carroll. sentada no vaso, penso numa lacraia gigante saída do ralo, movendo-se furtivamente e meio saltitante pela casa na ponta dos pés, aproveitando a escuridão pra andar por aí, minha casa sendo pra ela um outro mundo.

do prisma do prédio me chegam os ruídos dos vizinhos. no ar fresco dessa hora, o som de um chuveiro me sugere que só pode ser um duende noturno que acaba de chegar do seu trabalho nas minas do fundo de uma montanha qualquer e prepara-se para deitar-se e dormir o sono dos justos antes que o sol nasça e lhe fira os olhos de lêmure.

ou talvez seja um elfo de orelhas e asas pontudas e transparentes, preparando-se para sua longa viagem matutina para o horizonte leste, onde abrirá os portões para a aurora.

quando tomar meu café termino de espantar os restos de sono dos ouvidos.

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ok, a parte da lagartona pode ter sido influência do conto do Leitor (que volta e meia dá uma de autor agora, mas não quero entrar na seara das discussões sobre a autoria dos leitores em geral) ou, quem sabe, da "alice comentada" que ganhei de natal e li em janeiro.

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daí, fui procurar a ilustração original do tenniel à esquerda e me deparei com a outra ilustração ("desenho de conceito - lagarta fumante"), no flickr do d'araújo, que atende pelo sugestivo título de "cancer de boca". uma coisa fabulosa.
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sim, tenho um estóico e admirável vizinho(a) que todos os dias, faça chuva ou faça sol, toma banho pontualmente às cinco e vinte da manhã. mesmo no carnaval, mesmo na quarta-feira de cinzas. desconfio que seja a síndica, cujo nome ainda desconheço (mesmo morando há dez meses no prédio) e que mora no quinto andar. é uma boa síndica, o prédio é bem cuidado e ela não enche o saco. um outro vizinho(a) passa um aspirador barulhento na casa todo santo dia às sete e meia. mesmo no carnaval. mesmo na quarta-feira de cinzas. não sei se é a síndica, tem mais pinta de ser a senhora neurótica do 205. haja saco.

à esquerda de quem entra

“Eu sou à esquerda de quem entra.”
- Cecília Meireles

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Labirintite
Sou escada em caracol
(subo e desço),
sou espiral, sou rodízio, sou rosário, sou rodopio,
sou girassol - sou banal.

Sou torcicolo, dor nas cadeiras, mestre-sala e porta-bandeira.
Moura torta, sempre tonta, sempre pronta
a oscilar – sou pêndulo, relógio de corda, molas e miçangas
pra fora, contas a pagar. Sou porta:
saúdo e dou passagem,
ou não. Sou ponta – espeto e espero.

Sou entre as entrelinhas e as estrelinhas,
com nariz vermelho e sardas de purpurina
no meio. Ora poço profundo e limoso,
minando água negra, fria e fresca,
ora flocos de nuvem em céu luminoso
de abril – acrobacias aéreas, piruetas,
névoa e náusea vesga.

Soco o ar anil indiscriminadamente, ao menor sinal
de dor ou felicidade,
e muito ainda nisso me disperso.
Tantas lágrimas me enferrujaram
as carrapetas das pálpebras.

Agora só choro sentada
e de olhos fechados:
como se meditasse.

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sim, sim, notem bem a hora da postagem. cá estou com a minha caneca de café-com-leite - e isso numa quarta-feira de cinzas, depois de ter ido dormir à 1:15 da manhã. :-P
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20.2.07

momento post secret

meu melhor amigo desapareceu. a última notícia que tive é que estava lutando contra uma depressão.

já há 8 meses não falo com ele; de vez em quando ligo pra sua casa e ninguém atende. tenho medo de ligar pra casa da família, tenho medo da notícia que podem me dar. de vez em quando acordo no meio da noite e fico angustiada, prometo que no dia seguinte vou ligar pro irmão dele. mas nunca ligo.

ele sempre esteve do meu lado. gosto de dizer que é como um irmão para mim, que é o irmão que eu nunca tive. morro de culpa porque sinto que o abandonei, porque sinto que estou sendo covarde.

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Valsa dos Clowns
Em toda canção
O palhaço é um charlatão
Esparrama tanta gargalhada
Da boca para fora
Dizem que seu coração pintado
Toda tarde de domingo chora
Abra o coração
Do palhaço da canção
Eis que salta outro farrapo humano
E morre na coxia
Dentro do seu coração de pano
Um palhaço alegre se anuncia
A nova atração
Tem um jovem coração
Que apertado por estreito laço
Amanhece partido
Dentro dele sai mais um palhaço
Que é um palhaço com um olhar caído
E esse charlatão
Vai cantar sua canção
Que comove toda a arquibancada
Com tanta agonia
Dentro dele um coração folgado
Cantarola uma outra melodia
Em toda canção
O palhaço é um charlatão
E esse charlatão
Vai cantar uma canção
- Chico Buarque / Edu Lobo

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pro Beto, onde quer que você esteja. (me perdoe.)

stronger than friction

Faça a experiência: passe três horas de seu dia acompanhando suas ações de sempre, seus pensamentos, seus encontros e suas rotinas com uma narração mental detalhada, como se você fosse o protagonista de um romance que está sendo escrito enquanto você age. Que o resultado seja um atormentado monólogo interior ou uma seca descrição, de qualquer forma, seu mundo (externo e interno) será transformado. Se você prolongar a experiência (redigindo um diário, em forma de blog ou num caderno, pouco importa), a narração passará a comandar sua vida: aos poucos, suas escolhas serão decididas em função do texto que você está escrevendo. Critérios estéticos ("como fica isso na história?") acabarão se misturando com os critérios éticos pelos quais, até então, você se norteava.

- Contardo Calligaris, 21/01/07 - FSP

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não resisti, copiei daqui.

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será que o calligaris estava com "mais estranho que a ficção" na cabeça? tô com preguiça de procurar o texto original.

16.2.07

sucata

Sem fantasia
Vem, mas vem sem fantasia,
que da noite pro dia
você não vai crescer.
(Chico Buarque)

Hoje é dia de faxina:
estou de mudança.
Ordem geral nas gavetas.
Nos cantos.
Nos quartos.
Nos incômodos.
Tirar os móveis
e os imóveis
do lugar.
Mesmo os mais plantados,
os mais teimosos.
Mesmo os mais escuros,
devassar. Arejar. Espiar
e descobrir as teias
mais sólidas. Os bolores
mais incrustados.
As dores, as mais antigas.
Daquelas que dói só
de lembrar — quanto mais
de espanar. Botar
os fantasmas no lugar,
amassados camaradas
velhos de guerra.
E descascar o mofo
à pontinha de unha,
com cuidado, com muito
cuidado (mas mesmo),
pra não me arranhar.
Juntar então dolorosas
montanhas de entulho.
E com o lixo, depois
e ecologicamente correta,
fazer flores de papel-machê
coloridas e cheirosas
pra enfeitar a casa nova,
carinhosamente reciclada.
Rio, 11/05/1997
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a propósito, o aviãozinho de lata é do albini...

outras realidades

"No entanto, cheguei a uma conclusão importante, por mera observação empírica. Outras realidades têm direito à existência, e existem, de fato."

- O Leitor

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Não podia ser mais preciso. :-)

torè kong!

Há tempos venho querendo voltar a escrever aqui. Cheguei a rascunhar mentalmente alguns textos – inclusive um com certas reflexões interessantes a propósito de um sonho qualquer que andei tendo e que acho que teriam dado um post bacaninha, mas esqueci completamente o que eu ia dizer. Até que ontem meu amigo Leitor me deixou aqui um comment e, não sei muito bem por que nem como, me tirou dessa letargia, afinal.

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Muchas gracias, Leitor. ;-)

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Tendo esquecido o post interessante sobre um desses sonhos que andei tendo, pego então um sonho interessante e teço a seu respeito comentários inócuos e despropositados. Fazer o quê?

É a vida (como diria Manuel Bandeira).

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Minhas noites esta semana foram povoadas por rugidos na floresta e um grande orangotango branco – de cabeça coroada e tudo, o verdadeiro rei da selva. Um monarca bem furioso, é verdade, bem capaz de me partir ao meio.

Bem, e literalmente cá estou eu partida ao meio, me preparando pra encarar minha sessão semanal de fisioterapia pra solucionar essa profunda desorganização do meu quadril que vem me dando a sensação constante, desagradável e dolorosa de que meu lado direito inteiro do corpo está mais curto que o esquerdo. Fora um torcicolo crônico (do lado direito, claro) que me perturba já há quinze dias.

Pois então, o orangotango: uma mistura de King Kong, Rei Lu ("Sabadabadá, sabadabadú, sou o rei da macacada, sou o Rei Lu!") e elefante branco - como, aliás, soem ser os presentes de grego com que este inconsciente perdido e confuso que me habita costuma me brindar nas madrugadas.
Note to self: animais brancos, nas histórias, costumam ser sagrados. (Então tá...)

E a floresta: de um verde escuro, úmido, profundo. Denso. Quase impenetrável.

Eu disse “quase”...

E uma estrada bem cuidada serpenteando pela mata, uma espécie de “estrada dos tijolos amarelos” de chão batido e pedrinhas, levando - para que Oz? Para uma Cidade das Esmeraldas fajuta, sem dúvida, cercada de uma paliçada de bambu e com uma grande fogueira comunitária no meio de meia dúzia de choças; onde eu seria imolada ao grande orangotango branco, que na última hora se apaixonaria por mim (mesmo eu não sendo loira nem ele sendo o King Kong), recusaria o sacrifício e me pouparia a vida. E casaria comigo, talvez?
Bom, só não sei se depois teria o detalhe de um anjo descer dos céus com um cordeiro pra colocar no meu lugar e me prometer as bênçãos divinas e "uma posteridade tão numerosa quanto as estrelas do céu e quanto a areia que está na praia do mar" (Gn 22, 1-18).
Ahn... como seria a minha descendência com um orangotango branco?

Anyway, é nisso que dá tentar voltar atrás em sonho: você dá meia volta pra fugir e se depara com um portão barrando a passagem (na hora de entrar no túnel, tudo bem, né, claro que não tem portão nenhum; mas, na hora de sair, já viu: são outros quinhentos), um orangotango hidrófobo (e branco ainda por cima! Seria albino? Grisalho?), uma guria com cara de morta-viva vestida que nem uma Ártemis esfarrapada, pronta pra te dedurar quando você se prepara pra fugir, e, pra completar, um monte de canibais (os “súditos” do macacão) pintados igual ao pessoal da Timbalada e loucos pra te pegar. Mesmo ele não sendo o King Kong, nem sendo eu loira.

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...
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Às vezes me acho meio despirocada. E completamente incompreensível... :-P