22.3.07

merdas felizes

Fernanda Montenegro, sobre a longevidade de seu casamento com Fernando Torres:

- Nós já fomos jovens, muito jovens e fizemos tanta merda que você não pode imaginar. Fizemos merda adoidado e acho que é por isso mesmo que sobrevivemos juntos... Porque você sabe né, a merda aduba.

21.3.07

tantas noites em flor


Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.

-
Sophia de Mello Breyner Andresen

= = =

Aprendi aqui. E aprendi também que hoje é Dia Internacional da Poesia.

12.3.07

condensação

Tenho exalado bile e mel pelos poros.
Transpiro e escorro da cabeça aos pés,
deixando uma cauda de açúcar e fel pelo chão.
Piso e ouço sblosh, sblosh a cada passo que dou.
Caminho escorregadio de lama fresca,
barro recém-lavado pelo temporal,
estrada longa de terra antiga que não levanta pó.

Ando tão líquida ultimamente:

lodo e musgo nas axilas,
pingos invisíveis ecoando na gruta dos ouvidos,
a vagina úmida de maresia.

Acho que estou resfriando
– hoje em dia, evaporo cada vez menos.

11.3.07

convescote

Penduro dúzias de argolas nas orelhas,
protejo os ouvidos com conchas de caramujo e búzios,
tranco a chave o azul dos meus olhos tristonhos;

os pêlos das narinas polvilhados de pólen,
a pele salpicada de pérolas,
a penugem do corpo besuntada de glitter
e mel;

girassóis trançados nos cabelos
e sementes brotando do decote,
entre seios fartos lotados de leite;

me atavio de miçangas coloridas,
uma saia rodada e estampas florais;
enfio anéis de brilhantes nos dedos
e, nos pés, sapatilhas de strass;
embrulho o cérebro num lenço de seda

e saio para passear.

Ao pisar a estrada dos tijolos amarelos,
minha vulva de vidro se estilhaça
e desabrocha-me – puf!
um par de asas no quadril.
= = =
foto: você também pode adquirir um encantador par de asas como esse no your enchanted wedding! tenha um casamento de conto de fadas!

10.3.07

narciso

Meu corpo se cala à espera
de que minha matéria submersa
aflore

Meus ossos projetam
suas sombras magras nos degraus
estreitos

Minha carne suspensa
ofega
minhas vísceras azuis
expostas
(flutuam na lama espessa)

Por expectativa

as folhas mesmas silenciam
e as nuvens

Maquio meu rosto à espreita
de ver se o avisto
no espelho

Respiro
normalmente

Rabisco os cantos da pele,
grafite indecifrável –
(abraço meu berço)
como passatempo

Lagartas se arrastando nos galhos imóveis,
a vida transcorre
com calma
e ganha forma
e força.

= = =

ilustração: alyssa monks, "liquid"

descobri aqui.

8.3.07

múltipla

Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho, olhando pro fogo.
benze quebranto, bota feitiço, ogum orixá,
macumba, terreiro, ogã, pai-de-santo.

Vive dentro de mim a lavadeira do rio vermelho,

seu cheiro gostoso d'água e sabão
rodilha de pano, trouxa de roupa, pedra de anil
sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim a mulhar cozinheira, pimenta e cebola

quitute bem feito, panela de barro, taipa de lenha
cozinha antiga, toda pretinha, bem cacheada de picumã
pedra pontuda, cumbuco de coco, pisando alho-sal.

Vive dentro de mim, a mulher do povo

bem proletária, bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa,
de chinelinha e filharada.

Vive dentro de mim a mulher roceira - enxerto da terra,

meio casmurra, trabalhadeira,
madrugadeira, analfabeta, de pé no chão
bem parideira, bem criadeira
seus doze filhos, seus vinte netos.

Vive dentro de mim a mulher da vida

minha irmãzinha, tão desprezada, tão murmurada
fingindo alegre seu triste fardo.

Todas as vidas dentro de mim:
na minha vida - a vida mera das obscuras.

- Cora Coralina

= = =

um achado daqui.

3.3.07

ó alice


vivi a vida toda trancada no meu mundinho (de alice) justamente pra não ter que passar por isso. não ter que encarar. lidar com as neuroses alheias, além das minhas próprias, dá um trabalho danado, e ainda por cima dói. mas aí alice me escorraçou de lá pra fora, e aí mifu.

hoje não consegui abrir a minha boca pra falar coisas que precisava dizer. (...) o mais fácil pra mim foi chorar. que é o que eu tenho feito abundantemente quando as palavras se recusam. quando não sei como faço pra me colocar, (...) eu calo.

ao mesmo tempo, (...) nada de cavar meu próprio poço, senão já viu. nem de cavar meu próprio fosso - aquele, cheio de jacarés que vão comer quem tentar chegar perto -, que é pior.

às vezes dá no saco, às vezes é tão difícil, às vezes dá a impressão de que não vai dar, não tem jeito, caput.

(...)

incrível como o outro nunca pergunta exatamente o que eu gostaria que perguntasse. saco, saco ser pisciana, é tudo tão pra dentro sempre, tão aidemim. pior: tem sempre um mas. pisam no meu pé, eu grito por dentro "C******!!!!", mas aí vem o mas: ih, olha, pisou no meu pé mas nem foi por querer, foi porque eu entrei de repente e confundiu o meu pé com uma barata cascuda. e tudo o que eu consigo dizer é (ui.) - e, se duvidar, ainda levo bronca por ter o pé baratesco.

(...)

quando eu falo nem sempre sou ouvida como gostaria. quando não falo, aí é que não sou ouvida mesmo. pensando bem, não é tão difícil assim de entender. duro é botar em prática.

juro que hoje não acordei assim, mas depois fiquei truncada. e fez um dia tão bonito.

tô com fome, mas a boca não abre nem pra isso.

= = =
ilustração: "some days i remember somethings i forget", kurt halsey