E foi então que aconteceu.
Abri a porta e senti que a sala cheirava a ovo e borracha queimada. O papel de parede (tinha sido verde um dia) não passava de uma lembrança desbotada sob a poeira em crosta e caleidoscópios de bolor. Contrastava com a limpeza sem lustro dos móveis cafonas, singularmente despojados de qualquer enfeite ou mimo. A impessoalidade e o ecletismo da decoração conferiam ao apartamento um aspecto de depósito, ou de um cenário armado às pressas especialmente para a ocasião.
Junto à mesa de jantar, de costas para mim, uma mulher alimentava o filho num cadeirão de bebê. De onde eu estava, seu cabelo desgrenhado parecia sujo. Ela não desgrudava os olhos de um televisor preto e branco, embora a interferência fosse tanta que as imagens eram irreconhecíveis e o som não passava de uma chiadeira de ensurdecer. Enfiava a sopa roboticamente na boca do menino, sua roupa coberta de manchas, às colheradas.
O menino olhou-me com olhos inteiramente vazios e negros. Era a encarnação de todo o mal que já grassou no universo em todos os milênios e milênios da história passada, presente e futura. Fui tomada por um pavor medonho, senti-me desfalecer.
Ele sorriu. E o sorriso também era negro e vazio. Dentes pontiagudos de predador.
O pavor tornou-se um desespero que eu já não tinha como suportar. Se aquele mal me tocasse eu derreteria e ficaria para sempre imersa na água a ponto de congelamento, suas garras enfiadas na minha garganta. Melhor não existir mais, e atirei-me pela janela na esperança de escapar. Não de sobreviver, mas de não sentir mais.
Estava caindo de costas e vi o momento exato em que ele pulou atrás de mim, braços estendidos na minha direção, sorriso estampado no rosto, aproximando-se cada vez mais rápido, muito mais rápido do que eu caía, e entendi. Ele me alcançaria antes que eu chegasse ao chão.
Eu preferiria dizer que o medo foi imenso e fechei os olhos com força, com toda a força – quando abri, estava deitada de madrugada na minha cama, ainda com a recordação da queda vívida no meu corpo. Preferiria dizer que, angustiada, acordei a pessoa ao meu lado e passei as duas horas seguintes sendo consolada e protegida, sufocada pela sensação de iminência, de que ele surgiria na porta a qualquer segundo e só esperava para me torturar mesmo. Preferiria dizer que acabei conseguindo conciliar o sono outra vez, exausta, embora desde então tenha me viciado em pílulas para dormir e só consiga atravessar as noites com uma luz acesa na cabeceira.
(Mas a verdade é que ele me alcançou mesmo antes que eu chegasse ao chão, me abraçou, e, hoje, minha alma não me pertence mais.)
2 comentários:
Um dos melhores contos de terror que já tive o prazer de ler. Obrigado por essa pérola.
eu nao consigo achar a opiniao do autor sobre o texto
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