31.8.06

pátina

Janelas abertas
azuis, verdes, vermelhas, amarelas.
Venezianas, cortinas de renda, vasinhos de flores no parapeito;
o café preto fumegante,
canequinha de folha na mão.
Lá dentro um relógio na parede
faz tique-taque sem pressa.
O cheiro de pão de queijo quentinho vindo da cozinha,
chão de cimento queimado,
as paredes caiadas de branco,
móveis recém-encerados
e um zum-zum de bicho que voa em algum lugar.
Descascar distraída o verniz do batente com a pontinha da unha.
Chinelo de dedo pela calçada,
o musgo nos paralelepípedos,
bicicletas pelas ladeiras...
- Eu tô voltando, mãe.
Já tô voltando pra casa.

= = =

Dois poemas assim, puf!, em dois dias. Acho que a minha poesia, depois de um retiro sabático de 6 ano e meio, voltou - desse jeito, meio que mineiramente.

(Deve ter muita história pra contar; será?)

Amém.

= = =

Pátina:
Substantivo feminino
2. oxidação das tintas e sua mudança gradual decorrentes da ação do tempo e da luz
5. (Derivação: sentido figurado) o envelhecimento
Ex.: a p. do tempo não atingiu a elegância daquela senhora.

;-)

30.8.06

recém-saído do forno

Manifesto
Outro dia cheguei num lugar
aonde já não ia há muito tempo
- tanto, que tinha até esquecido.
Era um lugar de céu límpido e claro
um ar fresco de alto de montanha
e um solzinho gostoso pra me esquentar.

Daí me deu uma tristeza imensa
por já não ir lá há tanto tempo,
por não lembrar mais
(de tanta pedra que eu carrego)
como era me sentir leve de vez em quando.
Foi então que percebi
quanta porta fechada carrego dentro de mim,
quantos nãos digo pra mim mesma o dia inteiro,
todos os dias,
e me tolhem os movimentos,
me cortam as asas,
não me deixam respirar.

Está na hora de dar um basta.

Isto é um manifesto:
CHEGA DE PORTAS FECHADAS.

Pretendo começar a abri-las todas, uma por uma;
e aquelas que não forem mais necessárias, demolir.
Aliás, pôr abaixo paredes inteiras,
sempre que possível.

E, no espaço assim aberto,
plantar um jardim e
soltar os meus bichos
- e rolar na relva com os leões,
subir a correnteza dos rios com as carpas,
esvoaçar entre as flores com as borboletas,
cavalgar unicórnios e libélulas
e depois descansar nas nuvens,
aninhada em conchas de madrepérola.

Para enfim reencontrar
no espaço
a paz que guardo dentro de mim.

(Rio, 30/08/06)

ilustração: laini taylor (essa moça é uma danada! ;-)

mundo mundo vasto mundo

sabe o que é? o que vale é não ter nem poucos nem raros amigos como o homem atrás dos óculos e do bigode.
gostei muito da nossa conversa anteontem.

"if you tell me i can help you" - exploding dog
(se você me disser o que é, posso te ajudar. ;o)

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

(Carlos Drummond de Andrade)

nove meses

Rio, 20/11/1995

29.8.06

novidade

HUGO: Já estamos quase em casa.
LIMBERG: Que bom, tô com fome.
GRIM: E eu tô louco pra tirar uma soneca.

= = =

Tenho sentido um estranho desejo
de brincar de boneca.
De vez em quando sinto de repente
o cheiro das margaridas amarelas da minha infância
e me dá uma vontade louca de chupar fruta no pé,
correr pelo quintal,
soltar pipa com os amiguinhos,
experimentar escondida a maquiagem da minha mãe
com o coração aos pulos na frente do espelho do quarto,
torcendo para ela não chegar antes da hora
e estragar a surpresa.
Vontade de enfeitar o cabelo com pregadeirinhas coloridas,
só pra ver como fica;
uma saudade danada de muitas coisas
que eu nunca tive.

E, depois desse tempo todo caminhando no escuro,
entre paredes de pedra úmida,
sinto no rosto essa aragem morna
que me anuncia um vasto campo para eu correr ao sol,
entre montanhas,
onde me esperam um riacho de águas frescas para eu matar a sede,
um cesto de piquenique (com direito a toalha xadrez e tudo)
para eu matar a fome,
um bando de amigos queridos para matar a saudade

– e onde, finalmente,
me darei à luz.

(Rio, 09/05/06)

ilustração: "hugo earheart"- jake parker (flight vol. 1)

crisálida


Ontem acordei de olhos baixos e retraídos,
espremidos de fotofobia.
Tinha a alma marejada de tanto luto
e não via um palmo adiante do nariz –
logo eu, que morro de medo do escuro.

Hoje já levantei um pouco mais leve.
Dei até um sorrisinho na janela
e não está doendo tanto respirar.

Ontem passei o dia com gosto de cabo de guarda-chuva na boca.
Estava mareada, o peito oprimido, a coluna amassada.

Hoje quando acordei fiz aquele alongamento básico,
dei uma espreguiçada legal na alma,
sacudi um pouco o pó do coração.

Ontem estava me sentindo tímida atrás das minhas sardas duras;
fiquei o tempo todo encolhida dentro da máscara,
disfarçada de sombra, até criar teia de aranha.

Hoje as juntas não estão rangendo tanto –
até cantarolei embaixo do chuveiro.
E, depois de não ter comido nada ontem o dia inteiro,
como hoje acordei com mais apetite
fiz panqueca da minha enxaqueca emocional
e comi no café da manhã.

Ontem a minha letra estava tão miúda
que mal dava pra enxergar.
Hoje ela está se esparramando toda:
quase não cabe no papel.
Pra falar a verdade, apesar dos tempos bicudos,
em comparação com ontem eu hoje estou quase esbugalhada.

Ontem eu queria ser um cachorro. Juro!

Eu ontem não estava com nada.
Me senti muito suja, esquisita, desgrenhada -
mas hoje estou bem melhor.

(Rio, 23 de setembro de 2002)

ilustração: "all the help i needed" - explodingdog

feminina


(infância)

(Acho que não sou muito mulher, não.
Às vezes, acho que não sou nada,
porque não sou a mesma coisa sempre.)

Sou uma mulher muito esquisita.
Mamãe sempre me disse que ser menina é diferente,
não brinca de coisa de menino.
Mas as brincadeiras do meu pai eram muito mais legais
do que fazer pose de bailarina o tempo todo
como a minha mãe queria.
Acabei achando mulher um troço muito chato:
não tenho vocação pra bonequinha de louça,
nem nunca gostei de cor-de-rosa.
Resolvi ser outra coisa
e deixar esse negócio de ser mulher pra lá,
que é muito enjoado.

(Meus peitos caíram muito cedo.
Acho até que quiseram se esconder dentro das calças, coitados,
e virar bagos
– afinal, ser menino é muito melhor;
menino não tem que ser mulher.)

Hoje sinto esta nostalgia. Sinto uma falta –

Fiquei muito séria, minha postura é encolhida,
como se tivesse alguma coisa a ver
com a minha menina perdida.
Queria saber onde ela está, brincar com ela...

(De vez em quando avisto uma ponta de vestido,
sinto um cheiro, ouço um risinho
e desconfio que ela está por perto.
Só não sei onde procurar – onde será?)

Eu quero ser mulher
mas não sei.

(Rio, 21-09-02)

modernidade

disse bem: "as pessoas têm blogs, orkuts, flogs e afins, e ainda insistem em negar seu exibicionismo. É tudo ego. Para as grandes verdades ou os poucos segredos já existe email."
deve ser pq hoje em dia ou a gente é famosa ou não é ninguém.

= = =

O padeiro

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

(Rubem Braga)

a sopa primordial

Há um ano, em setembro/2005, reencontrei por acaso este texto, que havia escrito em fevereiro de 2004 - quando eu estava começando a entender que estava em depressão há pelo menos três anos, e a reunir forças pra tentar sair dali. Engraçado que, quando comecei a (re)ler, demorei um tempão pra reconhecê-lo; eu não só não me lembrava, como achei que era de outra pessoa - talvez justamente por ser tão representativo do que eu passei e de como estava me sentindo.

Ontem quando acordei me dei conta de que estava olhando pra trás há tanto tempo que nem lembro quando foi que começou. Quanto tempo passei esperando alguma coisa que nunca veio, e lamentando tudo o que tinha sido. Fiquei durante anos perdida num pântano gelado e fedorento, me arrastando, com a água ora nos joelhos, ora nas coxas, ora no pescoço, rodando, dando voltas sem perceber nem ir a lugar nenhum.
E as partes do meu corpo que estavam dentro d’água era como se se diluíssem nela, e eu deixava de senti-las... e o ar que eu respirava era úmido e denso e carregado de odores e miasmas, e respirar era tão difícil e abafado.
Ô coisa mais penosa.
Meu homeopata me perguntou no outro dia qual era a minha natureza. Falei da sensação que vinha me perseguindo há meses, de estar imersa numa água fria, gelada, escura (mas pelo menos limpa!). Em algum momento ele usou a palavra melancólica pra falar de mim, e pronto: me ficou que a minha natureza é, ou ainda está sendo, melancólica, meaning molhada.
É esse muco todo que ele explicou que me inunda, se acomoda na minha garganta e me vem do estômago quando fico ansiosa e/porque penso demais. Ou quando tomo gelados. Quer dizer, eu sou fria e úmida por dentro, o meu muco é a lama e os miasmas do meu pântano.
Pois então: o meu pântano era todo ocre e musguento. O ar era uma neblina espessa que filtrava a luz, criando uma claridade difusa e amarelada que fazia qualquer um duvidar da própria existência do sol. Nunca dava pra saber onde ele estava – nem se ele estava lá mesmo, antes de mais nada.
A Mãe era uma lama pegajosa, devoradora, movediça, e o Pai era o céu baixo, o ar grosso - ao mesmo tempo distante, irreal, imaterial, e permeante, presente, invasivo mesmo. Úmido, também ele, aliás. (E ambos inconstantes. Não dava pra confiar em Pais assim.) Ora, o ar era pra ser leve e fino e aberto e dar vontade de voar, e a terra, sólida, firme, concreta, e dar vontade de andar, de correr. Mas nesse lugar sem horizontes nem rumos nem caminhos tudo era líquido e estéril por sufocamento e excesso, e desolação. O que devia ser liberdade era prisão, masmorra, catacumba.
Raiva? Não, eu não sei sentir raiva. Não que não sinta, nada disso; é que a raiva me dá culpa e medo. Quando ela me vem, eu destruo e ponho tudo a perder, e fico sozinha. Ou pelo menos é disso que eu tenho medo.
(Quer dizer, um puta complexo de onipotência, prato cheio pra qualquer analista.)
Uma menina zangada era uma menina má, muito má. E quem se zangava comigo, era ruim também, então? Ou a minha raiva conjurava monstros pra me castigar e me destruir, ou eu estava cercada de monstros incoerentes, mesmo.
E no entanto a raiva, como uma lâmina em brasa, ia dividir o céu e a terra, pra começar. Mas tudo o que eu sei sentir é um aperto no peito, um abafamento, que eu chamo de angústia. E que me sufoca. Só o que eu sinto – e que me conforta na sua familiaridade – é essa falta de ar. Falta de ar me dá a reconfortante sensação de lugares fechados, espremidos; e as prisões são os lugares mais seguros do mundo, ou não são?
Tsc, não importa: Papai e Mamãe são devoradores, sufocantes, úmidos, movediços. São o meu pântano e os meus descaminhos, e não consigo nem sentir minha raiva deles em toda a sua plenitude.
(Um pouco de raiva seria tão libertador agora, mas eu ainda tenho tanto medo de ser livre. A sorte é que a liberdade está sendo cada vez mais necessária. A cada passo, sinto que as águas baixam mais um pouco e avanço um bocadinho mais em direção à terra firme.
O chão, pouco a pouco, vai ficando cada vez mais sólido. Logo vão começar a brotar aquelas gigantescas samambaias pré-históricas.)