29.8.06
crisálida
Ontem acordei de olhos baixos e retraídos,
espremidos de fotofobia.
Tinha a alma marejada de tanto luto
e não via um palmo adiante do nariz –
logo eu, que morro de medo do escuro.
Hoje já levantei um pouco mais leve.
Dei até um sorrisinho na janela
e não está doendo tanto respirar.
Ontem passei o dia com gosto de cabo de guarda-chuva na boca.
Estava mareada, o peito oprimido, a coluna amassada.
Hoje quando acordei fiz aquele alongamento básico,
dei uma espreguiçada legal na alma,
sacudi um pouco o pó do coração.
Ontem estava me sentindo tímida atrás das minhas sardas duras;
fiquei o tempo todo encolhida dentro da máscara,
disfarçada de sombra, até criar teia de aranha.
Hoje as juntas não estão rangendo tanto –
até cantarolei embaixo do chuveiro.
E, depois de não ter comido nada ontem o dia inteiro,
como hoje acordei com mais apetite
fiz panqueca da minha enxaqueca emocional
e comi no café da manhã.
Ontem a minha letra estava tão miúda
que mal dava pra enxergar.
Hoje ela está se esparramando toda:
quase não cabe no papel.
Pra falar a verdade, apesar dos tempos bicudos,
em comparação com ontem eu hoje estou quase esbugalhada.
Ontem eu queria ser um cachorro. Juro!
Eu ontem não estava com nada.
Me senti muito suja, esquisita, desgrenhada -
mas hoje estou bem melhor.
(Rio, 23 de setembro de 2002)
ilustração: "all the help i needed" - explodingdog
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