29.8.06

a sopa primordial

Há um ano, em setembro/2005, reencontrei por acaso este texto, que havia escrito em fevereiro de 2004 - quando eu estava começando a entender que estava em depressão há pelo menos três anos, e a reunir forças pra tentar sair dali. Engraçado que, quando comecei a (re)ler, demorei um tempão pra reconhecê-lo; eu não só não me lembrava, como achei que era de outra pessoa - talvez justamente por ser tão representativo do que eu passei e de como estava me sentindo.

Ontem quando acordei me dei conta de que estava olhando pra trás há tanto tempo que nem lembro quando foi que começou. Quanto tempo passei esperando alguma coisa que nunca veio, e lamentando tudo o que tinha sido. Fiquei durante anos perdida num pântano gelado e fedorento, me arrastando, com a água ora nos joelhos, ora nas coxas, ora no pescoço, rodando, dando voltas sem perceber nem ir a lugar nenhum.
E as partes do meu corpo que estavam dentro d’água era como se se diluíssem nela, e eu deixava de senti-las... e o ar que eu respirava era úmido e denso e carregado de odores e miasmas, e respirar era tão difícil e abafado.
Ô coisa mais penosa.
Meu homeopata me perguntou no outro dia qual era a minha natureza. Falei da sensação que vinha me perseguindo há meses, de estar imersa numa água fria, gelada, escura (mas pelo menos limpa!). Em algum momento ele usou a palavra melancólica pra falar de mim, e pronto: me ficou que a minha natureza é, ou ainda está sendo, melancólica, meaning molhada.
É esse muco todo que ele explicou que me inunda, se acomoda na minha garganta e me vem do estômago quando fico ansiosa e/porque penso demais. Ou quando tomo gelados. Quer dizer, eu sou fria e úmida por dentro, o meu muco é a lama e os miasmas do meu pântano.
Pois então: o meu pântano era todo ocre e musguento. O ar era uma neblina espessa que filtrava a luz, criando uma claridade difusa e amarelada que fazia qualquer um duvidar da própria existência do sol. Nunca dava pra saber onde ele estava – nem se ele estava lá mesmo, antes de mais nada.
A Mãe era uma lama pegajosa, devoradora, movediça, e o Pai era o céu baixo, o ar grosso - ao mesmo tempo distante, irreal, imaterial, e permeante, presente, invasivo mesmo. Úmido, também ele, aliás. (E ambos inconstantes. Não dava pra confiar em Pais assim.) Ora, o ar era pra ser leve e fino e aberto e dar vontade de voar, e a terra, sólida, firme, concreta, e dar vontade de andar, de correr. Mas nesse lugar sem horizontes nem rumos nem caminhos tudo era líquido e estéril por sufocamento e excesso, e desolação. O que devia ser liberdade era prisão, masmorra, catacumba.
Raiva? Não, eu não sei sentir raiva. Não que não sinta, nada disso; é que a raiva me dá culpa e medo. Quando ela me vem, eu destruo e ponho tudo a perder, e fico sozinha. Ou pelo menos é disso que eu tenho medo.
(Quer dizer, um puta complexo de onipotência, prato cheio pra qualquer analista.)
Uma menina zangada era uma menina má, muito má. E quem se zangava comigo, era ruim também, então? Ou a minha raiva conjurava monstros pra me castigar e me destruir, ou eu estava cercada de monstros incoerentes, mesmo.
E no entanto a raiva, como uma lâmina em brasa, ia dividir o céu e a terra, pra começar. Mas tudo o que eu sei sentir é um aperto no peito, um abafamento, que eu chamo de angústia. E que me sufoca. Só o que eu sinto – e que me conforta na sua familiaridade – é essa falta de ar. Falta de ar me dá a reconfortante sensação de lugares fechados, espremidos; e as prisões são os lugares mais seguros do mundo, ou não são?
Tsc, não importa: Papai e Mamãe são devoradores, sufocantes, úmidos, movediços. São o meu pântano e os meus descaminhos, e não consigo nem sentir minha raiva deles em toda a sua plenitude.
(Um pouco de raiva seria tão libertador agora, mas eu ainda tenho tanto medo de ser livre. A sorte é que a liberdade está sendo cada vez mais necessária. A cada passo, sinto que as águas baixam mais um pouco e avanço um bocadinho mais em direção à terra firme.
O chão, pouco a pouco, vai ficando cada vez mais sólido. Logo vão começar a brotar aquelas gigantescas samambaias pré-históricas.)

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