31.12.08

com atraso, tomo a liberdade de compartilhar aqui a mensagem de fim de ano que recebi de uma nova grande amiga:

"Queridos e Queridas:
Em 2008 eu renasci das cinzas, abri a crisálida, saí voando, aprendi a brigar, enterrei os mortos, fiz as pazes com o passado, amei melhor meus pais, entendi umas coisas dos amigos, ajudei um ou outro a entrar na canoa que era dele, abri o peito, andei de bicicleta, dancei, lutei kung fu, esperneei, aprendi a calma e a confiança, achei que deus existe, encontrei um amor novo, bonito e sólido, emagreci, cresci o cabelo, fiquei mais bonita, comprei um chapéu, aprendi a ser mulher, aprendi a trabalhar pelo que eu quero e a ser mais generosa e menos violenta. Foi um puta ano. Foi o ano em que eu definitivamente voltei a acreditar.
Que 2009 seja mais legal ainda, com mais presença e menos ansiedade, com delicadeza e intensidade. A mudança está a caminho, cabe a nós inventar um jeito novo de viver.
Feliz Natal para os cristãos, Feliz Hannukah para os judeus, feliz tudo para todos de todas as religiões que eu conheço pouco. Mas sobretudo, feliz contato com o Deus que habita dentro.
E que a gente se veja mais, se tiver que se ver, ou se lembre com aquele sorriso no canto da boca, no meio de uma tarde na repartição, dos amigos que sempre estão.
Amo vocês, de perto ou de longe."

Feliz ano novo para todos nós.

Até 2009. :-)

18.12.08

o espelho me mostra um rosto que mal reconheço como sendo meu

O espelho me mostra um rosto que mal reconheço como sendo meu. Vejo olhos, nariz, boca; queixo, bochechas, testa. Sardas. Sobrancelhas, separadas por um vinco de incompreensão. Por mais que me esforce, as peças não formam um todo. Não consigo uma visão geral. Tudo me é estranho, embora vagamente familiar. Uma revoada de interrogações, como uma nuvem de gafanhotos devorando tudo o que encontram pela frente: plantações inteiras, florestas, bibliotecas, carros, casas, interferindo nos radares e sistemas de controle de vôo dos aeroportos e provocando desastres, quedas de aeronaves com explosões em série e centenas de mortos – agito as mãos à frente da cara para espantá-las.

Mas toda esta sofreguidão, o sentimento arquejante de urgência. Preciso decifrar o enigma deste rosto que me olha do espelho, à espera de ser visto.

16.12.08

larguei a mala quadrada e dura junto à porta pra catar a chave no bolso da saia

Larguei a mala quadrada e dura junto à porta pra catar a chave no bolso da saia. Girou com dificuldade na fechadura. Dei com uma salinha vazia, de piso gasto; botei a mala pra dentro e meus passos soavam meio ocos. Parecia que as paredes me espiavam.
Fechei a porta atrás de mim.
E senti que meus ouvidos se tampavam, como se uma pressão enorme – um barômetro ali teria estourado. Meio surda, percorri o apartamento, olhando tudo de longe; os olhos embaçados como se estivesse embaixo d’água, a atmosfera semilíquida difícil de respirar (com minhas guelras ainda tão incipientes). Não lembro nada do que vi.
Seis minutos depois, estava esgotada. Me arrastei até o colchão imundo no quarto e apaguei.
Dormi três dias seguidos.

O apartamento me olhava espantado.

12.12.08

na penumbra, o apartamento vazio cochilava

Na penumbra, o apartamento vazio cochilava. Sonolentas, as persianas empoeiradas e tortas filtravam a luz e abafavam o ruído constante da avenida. Os cômodos de pé direito alto, úmidos e frescos, recendiam a mofo e cabeceavam. Assim também o piso de pastilhas hexagonais supostamente brancas, encardidas pelo uso; os azulejos decorados com motivos fora de moda; as torneiras e ralos oxidados – uma delas (a da cozinha, talvez) ressonava, incapaz de conter um finíssimo fio d’água que deixava um rastro de ferrugem na louça rachada. No quarto, o armário corpulento de portas entreabertas, meia dúzia de frágeis cabides de arame na boca. O espelho do armarinho sobre a pia do banheiro, exausto e baço pelo tempo. Os tacos soltos no chão – desmaiados. A sonolência impregnava as paredes e se acumulava preguiçosamente junto aos rodapés. A casa toda dormitava pelos cantos.

Até que, num fim de tarde chuvoso, o apartamento adormecido abriu os olhos de repente; a respiração suspensa por uma fração de segundo, na iminência de – o som da chave na fechadura como que rasgando cortinas – e a porta abriu-se com um rangido lento.

7.12.08

ouvi falar de uma mulher

Ouvi falar de uma mulher – não lembro quem – que, após dezesseis anos de análise, teve um colapso nervoso definitivo e precisou ser recolhida a um asilo, convencida de que era uma aranha. Agora ela passa seus dias embrulhada em pilhas de cobertores, sobretudo no verão, na tentativa de excretar pelas glândulas sudoríparas fios para tecer sua teia. Até hoje só saiu suor mesmo, mas ela continua infatigável em sua determinação, em meio às cobertas empapadas.

4.12.08

Enquanto durmo (no fundo da minha caverna)


Enquanto durmo (no fundo da minha caverna), chove sem trégua há quarenta dias e quarenta noites; o céu baixo e sujo parece prestes a desabar.

Até que um dia uma nova trilha sonora me desperta. Em vez dos rugidos do temporal, são passarinhos catando grilos entre as folhas molhadas, restos esparsos de chuva pingando dos galhos nas poças do chão, pequenas mariposas marrons sacudindo a umidade das asas.

Abro a janela e faço um teste: atiro um punhado de penas brancas. Quando o vento as devolve secas, reconheço que meu tempo de hibernar terminou.
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Foto: veio daqui

3.12.08

Camões

Reza uma das recentes lendas internéticas que uma prova de vestibular (da USP ou da Federal da Bahia, as versões divergem) pediu uma interpretação deste trecho de Camões*:

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.


Diante disso, uma vestibulanda fez a seguinte análise:

Ah! Camões, se vivesses hoje em dia,
tomavas uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.


Compravas um computador,
consultavas a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,

não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!


Se é verdade a história da prova de vestibular eu não sei, mas que é sensato, lá isso é.

= = =

*Não, NÃO é do Renato Russo!

1.12.08

Amor

Respirar
com
atenção

Silêncio...

Tempo
para ouvir
o vento
os grilos
a grama
as nuvens
os carros que passam
e buzinam na avenida.

Agite-se
com
moderação.

Desprendimento
Tempo
Aceitação

Atenção:
silêncio.

= = =

É fácil nos estabilizarmos para uma vida finita, pois é uma vida dentro de barreiras protetoras. Parece que estamos a salvo e seguros. De fato, não é fácil. O maior desafio é viver eternamente, responder à verdade última da nossa existência, identidade e morte. Compreender que somos feitos para a eternidade, vida não somente no mundo que está por vir, mas vida inteiramente vivida agora, excede o poder da imaginação. E estar inteiramente vivo exige tudo o que somos em cada momento.

- Laurence Freeman, OSB
("Perder para encontrar", Ed. Vozes, p. 87)
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Foto: Achei aqui.