Revirando as minhas coisas em busca de um cacareco qualquer, encontrei outro dia no fundo de uma gaveta um antigo auto-retrato 3x4, tirado no início do século passado num daqueles fotógrafos lambe-lambe de praça.
Eu usava um macacão de cetim, branco com bolotas azuis, calças e mangas bufantes, com um tutu de filó no pescoço; minha coluna vertebral descrevia uma curva e pendia para o lado, o tronco sanfonado qual uma mesura de arlequim. A cabeça, com um parafuso a menos, estava desenroscada do pescoço e flutuava, quilômetros acima do resto, presa por uma fitinha vermelha amarrada com um laço ao meu pulso esquerdo. A moleira, pronunciada, claramente visível. Olhando para baixo, eu avistava, por entre as nuvens, as minhas pernas – dois cambitos – com meus pés no final, enterrados em lustrosos 752 pretos da Vulcabrás quatro números maiores, que sambavam como chinelos.
Na mão direita, minha varinha de marmelo para autoflagelação.
No rosto, o nariz vermelho, as maçãs com duas bolas rosadas, os óculos retangulares para quebrar o redondo em excesso e o sorriso forçado, à guisa de máscara e mordaça.
Recentemente, contam-me, um chef especializado em frutos do mar explicava num documentário como escolher bons peixes no mercado. Segurando o dito pelo rabo e deixando-o pender no ar, à mercê da gravidade, aquele que não é fresco, impróprio para consumo, mostra-se molengo, largado, hipotônico. O peixe fresco não, é rijo e teso – atenção, não confundir com peixe congelado, que é duro feito pedra e quebradiço como gelo. O peixe fresco é firme: hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.
Deparar-me com aquele corpo sanfonado e tombado para o lado me fez pensar na minha espinha dorsal, no meu tônus muscular, na qualidade da minha pele e em como preciso que eles estejam vivos e vigorosos e vigilantes para eu não virar uma minhoca na lama nem, pior, uma sardinha velha conservada em óleo, imprensada com uma dúzia de outras dentro de uma latícula numa gôndola qualquer do supermercado da esquina.
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