19.10.06

iniciáticos

sonhei que me retalhavam em postas, depois juntavam os pedaços todos e crescia uma árvore imensa, imensa, imensa, de tronco grosso, galhos fortes, sombra generosa, que subia até o céu. então veio uma tempestade; o céu ficou cor de chumbo, o vento gritava furioso, e as gotas da chuva que caiu feito uma cortina d'água doíam de tão pesadas. acordei com a imagem daquela árvore tão imensa se sacudindo, batida pelo temporal, rangendo e gemendo como se sofresse.

mesmo acordada, ainda dava pra sentir a sua dor; de onde eu estava, ainda ouvia o seu lamento.

aí, lembrei das muitas tempestades da minha infância, do vento assoviando nas frestas das janelas daquele mesmo jeito, do barulho de portas batendo com força ao longe; e pensei neste inverno que não acaba nunca...

levantei, lavei o rosto, prendi o cabelo, calcei minhas meias para proteger os pés da friagem dos azulejos e fui para a cozinha fazer café.

desde então, meu coração parece que está lá fora em algum lugar, na chuva. não sei se está sozinho, com medo e com frio - mas o fato é que saiu, e não voltou até agora.

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("Tinha medo de enlouquecer, ao passo que dois milênios antes os homens ter-se-iam alegrado imensamente com semelhantes sonhos, na certeza de que representavam o prenúncio de um renascer do espírito e de uma vida renovada. Mas nossa mentalidade moderna olha com desdém as trevas da superstição e a credulidade medieval ou primitiva, esquecendo-se por completo de que carregamos em nós todo o passado, escondido nos desvãos dos arranha-céus da nossa consciência racional. Sem esses estratos inferiores, nosso espírito estaria suspenso no ar."

- C. G. Jung, in "Psicologia e Religião")


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Resistência
Então o que me resta agora
é juntar os cacos do meu coração suicida
que me pula do peito afora
corre contra a primeira parede e se espatifa
só pelo prazer de levantar
sacudir a poeira
e dar a volta por cima.
(1996)

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ilustração: p. cézanne, "le grand pin"

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