Alta madrugada. Os grilos lá fora, o tique-taque do relógio da cozinha, o zumbido da geladeira. Será que tem mais alguém acordado a essa hora.
(Talvez uma velhinha, fitando com os olhos remelentos de incompreensão uma rachadura inexistente no teto sobre a cama, esperando resignada que os minutos passem, um por um, até começar a clarear e sua acompanhante perceber que ela não está mais dormindo.)
E. ressona ao meu lado e resmunga qualquer coisa. Está dormindo a sono solto: que inveja... Um vizinho dá a descarga – alguém que levantou pra ir ao banheiro, mas vai voltar pra cama e dormir outra vez. O gato dorme no sofá; suspira.
Os móveis não passam de silhuetas na penumbra. Todas imóveis - ou pelo menos é o que parece.
Um mosquito começa a zumbir no meu ouvido. (Saco.) Cubro a cabeça com o travesseiro - como é abafado aqui embaixo. Talvez fosse melhor acender logo a luz e ler um pouco – mas estou cansada demais pra isso, sei que as letrinhas vão embaralhar todas na minha frente. Os algarismos vermelhos no relógio digital vão se sucedendo implacavelmente: 1:24. 2:10. 2:11. Quantas horas eu vou dormir? De 2:10 até as sete são uma, duas, três... Sete não, pode ser sete e meia. Cinco horas e...
Amanhã não posso esquecer de comprar pasta de dente na farmácia. Papel higiênico também; acho que só tem mais um rolo.
Será que o mosquito desistiu? Arrisco tirar a cabeça de debaixo do travesseiro: aah, ar fresco, que bom.
2:47. Este lençol está ficando velho, tá cheio de bolinhas. (Ocorre-me: é tênue a linha que separa o lençol velho "no ponto" daquele que começa a ficar com bolinhas.) Quem sabe se eu meditar um pouco: procuro me concentrar na minha respiração. Ar que entra, ar que sai, ar que entra, ar que sai, ar que entra... A temperatura está caindo de novo.
Será que amanhã vai continuar chovendo?
3:02. Que coisa: tem gente que dorme com o ar condicionado ligado mesmo neste frio.
Passou um carro de escapamento aberto na rua.
3:18.
Começo a sonhar. Até que enfim.
= = =
ilustração: s. dalí, "nature morte vivante", 1956
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