31.7.08

E a verdade é que esta mera perspectiva me apavora

E a verdade é que esta mera perspectiva me apavora: só de pensar em habitar meu corpo, sentir-me dentro da minha pele, perceber o calor e o frêmito da minha carne, me dá calafrios. Sofro dessa ânsia por existir e do pânico de que, vindo a fazê-lo de fato, eu me parta em mil pedaços ao menor contato com a realidade.

De modo que tenho seguido uma dieta rica em gordura e açúcares, com a qual procuro inutilmente entupir minhas artérias e induzir algum enfarto fulminante, por total e insofismável incapacidade de circulação.

30.7.08

Às vezes me dou conta de que estou olhando pra trás há tanto tempo

Às vezes me dou conta de que estou olhando pra trás há tanto tempo que nem lembro quando foi que começou. Esperando alguma coisa que nunca veio, lamentando tudo o que foi, perdida num pântano gelado e fedorento, me arrastando, com a água ora nos joelhos, ora nas coxas, ora no pescoço, rodando, dando voltas sem perceber nem ir a lugar nenhum.

As partes do meu corpo dentro d’água é como se se diluíssem nela, e não as sinto. E o ar que respiro é úmido e denso e carregado de odores e miasmas, e inspirar é uma façanha penosa. (Outro dia vi na televisão um programa sobre a natureza de cada um. Pensei na sensação que me persegue há anos de estar imersa numa água fria, gelada, escura e concluí: sou de natureza molhada.)

É esse muco todo que me inunda, se acomoda na minha garganta e me vem do estômago porque penso demais. Quer dizer, eu sou fria e úmida por dentro, o meu muco é a lama do meu pântano musguento. O ar, uma neblina espessa que filtra a luz e cria uma claridade difusa e amarelada capaz de fazer qualquer um duvidar da própria existência do sol.

Sou filha da lama pegajosa, devoradora, movediça, e do céu baixo, do ar grosso, distante e imaterial (e ao mesmo tempo pregnante, ubíquo, invasivo; úmido, ele também). Então, durmo e sonho com o ar leve, fino e aberto; e com a terra, sólida, firme, concreta. No entanto, este lugar sem horizontes nem rumos nem caminhos é apenas excessivo, inconstante e estéril. Tudo é desolação aqui, e tudo o que faço é dormir.

29.7.08

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu

Parece que o coração vai inchando, inchando, inchando, inchando, inchando dentro do peito, e crescendo, e ocupando cada vez mais espaço, e crescendo mais e mais até parecer que vai explodir - só que, em vez de explodir, vai subindo pela garganta (e quase entala), e pula fora da boca, cai no chão e sai correndo feito um doido, aos pinotes, pra não voltar nunca mais.

28.7.08

Acordei no quarto abafado e seco, a claridade forte do meio-dia enfiando-se, branca e listrada, pelas venezianas da janela

Acordei no quarto abafado e seco, a claridade forte do meio-dia enfiando-se, branca e listrada, pelas venezianas da janela. Um zumbido ao mesmo tempo próximo e distante de moscas revoando. Ou talvez mariposas. Na sombra do canto oposto do quarto, acomodado na cadeira em cima das roupas que eu tinha despido antes de deitar – ou as teria jogado no chão? Ou as dobrara e depositara delicadamente, zelosamente, ao pé da cama? Ou as havia embolado com displicência, para então embebê-las em querosene e atear fogo, e nem o incêndio no quarto, nem o estrépito dos bombeiros com suas sirenes e machados, puderam arrancar-me do profundo torpor? (Mas, sendo assim, não deveriam as paredes enegrecidas e ainda encharcadas do rescaldo, e o fedor asfixiante da fumaça? A menos que se houvessem passado séculos e o tempo transcorrido se encarregara de apagar as marcas do incêndio com as próprias mãos.) Ou eu não estaria lembrando bem, e as tais roupas jamais existiram, e eu já havia chegado àquele lugar nua na noite anterior? – não sei, tudo é mistério – na sombra do canto oposto do quarto, acomodado na cadeira, um vulto me observava.

Não saberia dizer há quanto tempo esperava, mas percebia já um véu sutil de impaciência.

De pêlos arrepiados ao som compassado da sua respiração, sentei-me na cama com cuidado, como se o sentar-me me tornasse capaz de enxergar melhor na penumbra e assim divisar-lhe os traços, e perguntei: “Pois não?”; o vulto imóvel, a respiração inalterável.

As horas se escoaram – eu podia dizer pela cor da luz, agora menos dura, e o deslocamento da sombra pelos sarrafos da veneziana, e as câimbras e espasmos irresistíveis que me ferroavam os músculos como um enxame de vespas – e o vulto imóvel, a respiração inalterável, o véu sutil de impaciência que nos separava como uma lâmina.

Escuro lá fora já, e o silêncio da noite, eu empapada de suor não sentia mais as vespas, nem as mariposas, e o vulto imóvel, e sua respiração, e a lâmina riscando a pele, e os dias escapando em revoada –

E os dias sucedendo-se inexoravelmente, eu insensível como uma pedra e a lâmina cada vez mais concreta varando-me os ossos, e o vulto e sua imobilidade insuportável. As semanas acumularam-se em milênios, e não passávamos agora de duas sombras e uma muralha no meio, sozinhos num universo em ruínas, e a irrealidade cada vez mais esmagadora só não tinha ainda me matado de frio graças às teias tecidas por centenas de milhares de aranhas que me embalsamaram como num sarcófago.

E outros tantos anos-luz decorridos e a imobilidade nos reduzira a todos – gentes, vultos, sombras, cicatrizes, zumbidos e aranhas – a um tênue ponto de luz, um único grão de areia que, em sua solidão, era tudo o que restava do que fora outrora o conjunto dos eventos cósmicos em sua totalidade.

E quando a luminosidade débil do derradeiro grão do universo bruxuleou e ia morrendo, uma fração de instante antes de mergulharmos nas trevas e no caos original o vulto descruzou as pernas, inclinou-se para a frente – e na réstia de luz vi que seu rosto era idêntico ao meu –, olhou-me no fundo de onde antes ficavam meus olhos e perguntou, com a voz mansa e grave do tempo que finalmente se esgota: “quem é você?”.

Em criança, fui violentada avidamente todos os dias por palavras cruéis

Em criança, fui violentada avidamente todos os dias por palavras cruéis. Aprendi que a realidade era nua e crua, e dura. Um dia descobri um oco entre as raízes de uma árvore do jardim, junto ao muro, e desenvolvi o hábito de ali me refugiar da violência e da perversidade. Era a minha passagem secreta para um mundo subterrâneo no centro da terra, habitado por seres fantásticos e criaturas de lenda, um país escuro e úmido em que eu me enfiava sob as camadas de musgo que revestiam a terra e dali acompanhava atentamente as vidas das minhas quimeras.

27.7.08

Meu pai era um sólido bloco de ferro negro

Meu pai era um sólido bloco de ferro negro. Eu adorava sua potência, sua virilidade, sua autoconfiança briosa, seu porte altaneiro. Vivia na sua órbita; era para junto dele que eu corria ao menor sinal de perigo ou ameaça, e à sua sombra eu me sentia protegida e não havia nada que eu temesse. Até que um dia soprou uma rajada mais forte e vi meu pai trepidar, ranger e estatelar-se com estrondo no chão.

Ficou estirado, imóvel, a cara enfiada no pó.

Só aí parei para olhar bem e notei que ele não passava de uma estátua desprovida de espírito e carcomida pelos elementos. O que até então eu julgava ser sua voz retumbante não passava do vento soprando pelos buracos de ferrugem que eu acreditava serem sua boca, nariz e olhos — quando na verdade ele nada via. Permaneci muito tempo estática diante do ídolo oco que fora o centro da minha vida até ali. Não saberia dizer quando comecei a me afastar em passos lentos; perdi-o de vista; a esta altura, mesmo que quisesse voltar atrás, não saberia mais encontrar o caminho. (Deve estar lá até hoje. Arrastar tamanho peso seria tarefa árdua, e para quê? Inutilidade.)

A verdade é que esqueci-me dele por completo e hoje acredito piamente ter vindo ao mundo por obra e graça de alguma concepção imaculada. Entretanto, sua imagem retinta está gravada no meu espírito, e a prova é que nunca mais consegui deixar de enxergar força onde só existe dureza.

26.7.08

Desde pequena venho desenvolvendo a arte de berrar

Desde pequena venho desenvolvendo a arte de berrar. Recentemente, comecei a me aprimorar nos berros líquidos, que podem ser medidos não em decibéis, mas em metros cúbicos. Essa modalidade específica requer especial atenção para que a golfada não ricocheteie contra o berrador e o afogue. Trata-se de uma arte de alto risco. Exige ginga.

Hoje berro um pouquinho todos os dias, o suficiente para encher um jarro. Sacia a minha sede pelo resto do dia e economiza água. É bom, em tempos de aquecimento global e preocupações com o ecologicamente correto. No começo eu berrava mais, postada no meio da sala – mas incomodava os outros, não era educado. A vizinha de baixo reclamava do aguaceiro caindo todos os dias na varanda dela: por pouco não afogo suas petúnias premiadas. Decidi que teria mais mérito no berro controlado, e assim parei de berrar em vão. Passei a mirar em recipientes; especializei-me e só berro em potes. No entanto, sonho com o dia em que terei uma casa, e poderei regar o gramado com a gritaria.

24.7.08

Ninguém me escuta porque eu não falo

Ninguém me escuta porque eu não falo. Tenho olhos, orelhas, cabelo, cabeça, ombro, joelho e pé, mas não tenho boca. Tantas vezes eu me senti trancada no porão, berrando, esperneando e socando paredes, enquanto nenhum rasgo de som alcança o lado de fora. Olham pra mim e tudo o que ouvem é estática, shhhhhh. Houve um tempo em que eu acreditava possuir uma boca, mas firmemente costurada por uma inquebrantável linha de aço transparente. Fui a mil médicos que não viam nada de errado, até que um charlatão que havia comprado o diploma e afirmava realizar cirurgias espirituais incorporando o espírito de um médico húngaro dos tempos da Cortina de Ferro finalmente concordou em descerrar meu rosto. Depois da remoção, ainda fiquei 47 dias amordaçada antes de poder tirar as ataduras sozinha, em casa, diante do espelho. Tirei e fiquei olhando sem entender que, por baixo das suturas, não havia boca nenhuma; simplesmente não havia nada.

Não é porque certas coisas estão mudando

Não é porque certas coisas estão mudando que vou mudar de nome, apagar o meu passado e sumir no mundo. Gosto do jeito mais difícil - tentar ser outra sem esquecer quem fui.
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E esta sou e não sou eu. Nem toda inverdade é necessariamente ficção. Não obstante, meu mundo é selvagem e árido, inóspito como um deserto.