14.8.09

aprendizagem

aconteceu com uma treinadora de golfinhos que os recompensava com peixes sempre que eles faziam direitinho o que ela pedia. quando não colaboravam, como castigo ela dava as costas à piscina e se afastava por um tempo. um dia, na pressa ela não limpou os peixes como de costume. o golfinho, magoadinho, foi pro outro lado da piscina e ficou lá um tempo, de costas para ela.

ao que consta, a moça aprendeu a lição.

13.3.09

Largada no colchão, sonhando com tubarões e crocodilos, ela dorme a sono solto

Largada no colchão, sonhando com tubarões e crocodilos, ela dorme a sono solto — sem perceber que o fio d’água que escorre da torneira (da cozinha? ou do banheiro?) se acumula na pia, transborda e empoça. E escorre mansa pelo chão, inundando lentamente banheiro, corredor, quarto, acumula-se ao redor do colchão, agora transformado em ilha, e põe-no a flutuar, virado então em jangada.

O colchão-jangada desce a correnteza levando-a inconsciente, quase encalha na porta da cozinha, mas passa com um solavanco; até que, na pequena área de serviço, desaparece com o aguaceiro pelo ralo sem tampa perto da porta.

10.3.09

Enquanto isso, dia após dia eu me enfiava entre as raízes da velha árvore

Enquanto isso, dia após dia eu me enfiava entre as raízes da velha árvore e lá ia visitar minhas quimeras subterrâneas. Já não me contentava em acompanhar suas vidas de longe, porém; havia algum tempo que eu tinha me atrevido a abandonar meu cobertor de musgo e me introduzir em seu meio. Assim visitei as cidades de ouro e prata das quais conhecia antes apenas os muros, e vi por dentro palácios e estrebarias, cozinhas e salões. Cheirei as réstias de alho dependuradas, os afiambrados, os molhos de arrudas e outras ervas; cheirei o estrume dos mais magníficos cavalos, a madeira envelhecida dos balcões, cortinas de seda esvoaçantes e a fedentina das sarjetas. Percorri também os campos e florestas entre tigres-dentes-de-sabre, manadas de cervos de chifres dourados e unicórnios, dragões adormecidos e carpas encantadas; e hamadríades. Surrupiei ovos dos ninhos e compotas das prateleiras. Corri mundo — e a cada passo do caminho eu crescia e encorpava — afastando-me, passo a passo, da infância deixada para trás.

1.3.09

cântico negro

"Vem por aqui" – dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

Não, não vou por aí!
Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
– Sei que não vou por aí!

- José Régio

26.2.09

a desfazer-se (vera mantero)

o ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objectivos diferentes desses, precisa voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais sutil que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer essas coisas, assiná-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em acções, associando virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando. é preciso olear o espírito, olear o ser. é preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. é preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade (é muito importante não ter medo da sujidade), na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objetos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, não esquecer que há uma coisa que se chama êxtase, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, na relação com os outros.

nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação que a vida desapareceu cá dentro.

- Trecho do "poema em prosa" "A desfazer-se", da bailarina portuguesa Vera Mantero, que me foi presenteado por uma moça brilhante...

(Respeitada a grafia e pontuação originais.)

23.2.09

traduzir-se

Uma parte de mim é todo mundo
outra parte é ninguém.
Fundo sem fundo.

Uma parte de mim é multidão,
outra parte, estranheza e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera,
outra parte delira.

Uma parte de mim almoça e janta.
outra parte se espanta.

Uma parte de mim é permanente,
outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim é só vertigem,
outra parte é linguagem.

Traduzir uma parte noutra parte,
que é uma questão de vida ou morte,

será arte?

- Ferreira Gullar

= = =

Sabe? Acho que ganhei dois amigos novos hoje. :-)

5.2.09

paulo galvão

"Zepeixellin", Paulo Galvão

= = =
Com o que, aliás, muito me identifico, posto ser meu mundo interno povoado por uma multitude de máquinas-bichos e animáquinas que tais.

sa ga lu sa

Pensar assim me ajuda a superar, a ter meta, a não ficar no meu mundinho, surtadinha, sozinha, que egoísmo, vamos partilhar, é mais legal.

- Adriana Calcanhotto em "Saga Lusa"

4.2.09

cheguei à velha estação ao anoitecer

Cheguei à velha estação ao anoitecer: mato por toda parte e os grilos num cricrilar ensurdecedor. A mala, quadrada e dura — e lotada de ampolas de bile, segredos inconfessáveis, medos de dentes pontiagudos e sorrisos duros e cruéis —, pesava à beça.

3.2.09

tem pessoas que trazem ar novo à vida da gente

(pra ti, pedrito.)

no fundo do quintal passava um rio largo

No fundo do quintal passava um rio largo cuja existência tornou-se de tal modo parte dela que mesmo depois de adulta — mesmo muito depois de a casa, o jardim e o rio terem desaparecido — suas águas vagarosas continuariam fluindo em suas veias, seu barro daria cor à sua pele e seu gosto lhe inundaria a boca nos momentos mais felizes da vida, e também nos mais dolorosos.

29.1.09

O arroxeado do céu prenuncia o nascer do dia

O arroxeado do céu prenuncia o nascer do dia. De calças arregaçadas na metade da canela, o lago gelado fazendo doer-lhe até a medula dos ossos, você joga a sua rede; e espera.

Uma camada de neblina branca flutua sobre as águas a perder de vista. A paisagem estática e fria como um espelho. Nenhum junco se mexe na margem, nenhuma lavadeira ou salamandra, girinos, nada. Só a luz violácea, e a estrela-d’alva.

Você espera — que hoje venha mais que rãs e lambaris.

O frio perfura como alfinetes de prata seus ossinhos dos pés, e você pode contá-los um por um. E espera.

O horizonte anuncia uma fina lâmina de luz dourada. A estrela-d’alva bruxuleia.

Ainda não.

Ninhos entre os juncos, ovos malhados, aves aquáticas adormecidas. Você não os vê, mas estão lá.

Então, uma gota de orvalho que se acumulou a noite inteira cede ao próprio peso e escorre de uma folha de avenca.

Um pernilongo pousa com suas asas transparentes e forma círculos concêntricos imperceptíveis na superfície cristalina.

Uma brisa tão leve que move apenas três fios do seu cabelo — e você começa a puxar a rede com movimentos vagarosos e olhar atento...

...não.

Não, a única novidade hoje é uma tartaruguinha verde.

Talvez amanhã.

17.1.09

Há um tempo

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

- Fernando Pessoa

6.1.09

Por um sono

O pássaro pousa no sonho
um cantar de prata,
e a densa plumagem que o abriga
é de um verde inacabado,
de um amarelo rubro,
de presumida ferida.
O homem que sonha o pássaro,
aos olhos do pássaro,
é um gigante e,
por um instante,
parece tocá-lo com um grito.
O pássaro sonhado carrega
nas asas muitas pedras,
perseguições
e desencantos,
por estar preso ao sonho,
a um visgo tão ilusório quanto a sua existência.
O homem ainda é um menino
e acostumou-se a sonhar pássaros
para aprisioná-los nos seus poemas.

- Chico Perna