27.9.06

noite aberta (apontamentos - 1)


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"O momento assim surpreendido parecia conter um significado qualquer que lhe escapava, e a tudo se subordinava, como as notas de uma música. Geraldo Viramundo se sentiu mais só do que quando mergulhava no rio, mas era uma solidão feita de desamparo e saudade da infância — quando, minutos mais tarde, se ergueu e caminhou em direção à casa, percebeu que não era menino mais."
- Fernando Sabino, "O Grande Mentecapto"

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Meninas
Pois eu sabia agora que a vida não é como costumava ser. A vida era festa luminosa e de repente deixou de ser para mergulhar num escuro maior que o mundo, e eu me assustei muito com aquilo tudo. Assustei com a grandeza que eu de repente vislumbrei pràs coisas e que antes eu não suspeitava. Assustei muito mesmo e principalmente com aquela grandeza toda vir tão de repente eu não sabia de onde. Assustei, sabe, com todo o imenso insuspeitado da coisa quando ela ainda não tinha acontecido: como podia ter vindo de tão nada, de onde eu nada suspeitava, de onde nunca houve indício?

Porque não tinha havido nada lá antes, ou porque estava lá e eu não via - então, o que tinha me feito ver assim tão de uma hora pra outra? Não sentia nada diferente em mim, como se me tivessem nascido novos olhos. E no entanto o mundo me aparecia sob novos olhos, e tudo palpitava em novidade infinita. Então, de onde vinham os novos olhos, ou de onde vinha a novidade? — e era isso que me assustava, o imprevisível da coisa.

Me assustava a idéia de que havia escondidos além do mundo que eu via e que assim, sem ter nada além dele - ou seja, sendo ele mesmo -, já era tão complicado em si mesmo. Mas tendo coisas que eu não via ficava ainda mais complicado, porque eu ia ter que fazer, também com o que eu não via, alguma coisa. Porque eu pelo menos ia ter que prestar atenção todo o tempo, vigiando pra ver quando e de onde aparecessem — e quem sabe então eu não descobria de onde vinham os escondidos?

— Eu então decidi que não ia enfrentar nada, e fui me enfiar num buraco no quintal.
— Eu então decidi ao contrário, que tinha mais mesmo era que enfrentar o escuro — pois se os escondidos se descobriam vindo de onde eu não via, eles só podiam vir do escuro que era onde eu não podia ver nada, eu que já tinha escarafunchado todos os claros e sabia que lá eles não tinham nada escondido. E fui me enfiar num buraco no quintal.

Passou o dia todo comigo escondida lá dentro.

Daí, à noite quando a Mãe veio me procurar pro jantar, eu já tinha de tal modo afundado na escuridão da toca que nem que quisesse conseguiria me desvencilhar do buraco, porque eu não ia poder sair carregando toda a escuridão lá de dentro. Chega uma hora que a gente só pode afundar, que é quando a gente envereda de tal forma por uma porta que ela não serve como porta de saída, só pode servir de entrada. E então era nisso que eu me via quando escureceu — eu tinha que procurar o que me servisse como porta de saída, ou então cavar o meu próprio caminho pra fora (se não quisesse ficar o resto da vida presa ali no escuro).

Rio, 1996.

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ilustração: helenbar, "entrando na toca do coelho"

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