30.9.06

noite aberta (apontamentos - 3)

(estranhamento)

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"Não há certos nem errados, miúda. A vida é... a vida. Não há que d’zer-se. Não há sentidos no que faz-se ou não faz-se, (...) apenas sentimentos. Por isso sempre disse-t’ que agarrasses o que qu’rias co’as duas mãos." (Carlos Nascimento Silva, "A Casa da Palma")

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Rosa
Cheiro bom de sabão de coco resultado da mania de lavar sempre as mãos na pia da cozinha, era o que sempre me dizia a minha Menina, explicando porque gostava de mim.

Era mesmo lavando as mãos na pia da cozinha, pra preparar a comida, que eu estava quando vi o gato entrar na toca. Não tinha visto a minha Menina entrar, mas na mesma hora soube do que tinha acontecido. E me preparei, que a minha Menina, eu sabia, ia precisar de mim.

E, ainda bem, ela tinha o gato.

Passou o dia todo com ela escondida lá dentro. Daí, à noite quando a Mãe veio procurar a minha Menina pro jantar, ela já tinha de tal modo afundado na escuridão da toca que nem que quisesse conseguiria se desvencilhar do buraco, porque ela não ia poder sair carregando toda a escuridão lá de dentro. Ainda bem que o gato estava co'ela.

Fui espiar no buraco e vi que a minha Menina estava dormindo, com o gato enroscado nas pernas.

(...)

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E depois, depois daquilo tudo, a Menina que tinha entrado no buraco com o nome de Clara, e que mas quando ela saiu era Nina, porque já era outra (e depois, depois daquilo tudo), ela virou Clara novamente.

E tudo foi esclarecido. Depois, depois daquilo tudo.

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(Mas sinto sempre um tanto ou quanto de remorso pela falta de uma [improvável] história lógica.)

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Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
(
Florbela Espanca)

Rio, 1996

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