30.12.07
formicídio #3
30.4.07
estranhamento, entranhamento
Porque tem dias em que você foi jantar na antevéspera com os pais, e de repente eles chegam pra visitar de surpresa, e dão um monte de presentes bonitos e quentinhos, e você não está acostumada a se sentir quentinha com a sua família, muito menos bonita, e esse aconchego todo é muito estranho.
Porque tem dias em que há uma semana você está se sentindo do avesso, teu organismo está despirocado e nada mais é como era antigamente: você dorme demais, se entope de chocolate, tem uma prisão de ventre interminável (logo você, sempre tão soltinha, tão desapegada) e não consegue entender se está se sentindo como quem vai morrer ou como quem aguarda uma epifania iminente - ou como quem precisa ir ao banheiro com urgência.
Porque tem dias em que, do nada, te saltam imagens e cheiros e sons e texturas do fundo do baú da memória, e você fica o tempo todo sobressaltada, como se te observassem, como se teus sonhos e pesadelos infantis estivessem à espreita e pudessem ser despejados todos em cima de ti a qualquer momento.
Porque tem dias em que você tem a sensação urgente de quem procura; a sensação de quem corre por um parque deserto, com árvores negras desfolhadas, folhas secas pelo chão, vento soprando as folhas, e você sente os espinhos, e o frio, e o céu cinza e gelado, e procura alguém que não sabe quem é (e talvez seja uma guria de capinha vermelha, ou não), mas sabe que é importante e às vezes entrevê logo ali, ali na frente, dobrando a curva, sumindo atrás da árvore, tá quase, tá quase, mas não chega nunca.
Porque tem dias em que você fica cansada de repente.
Porque tem dias em que a temperatura cai, o outono chega, baixa uma gripe e tudo o que você quer é desligar o telefone, tomar chá, se embrulhar no edredom e que o nariz pare de escorrer.
= = =
inspirado pelo cafeína de hoje.
24.4.07
um brinde
= = =
o que me terá dado nos cabelos, não sei. sei apenas que deram pra encrespar, encherem-se de rococós e rosquinhas. talvez seja por eu ter acreditado piamente por toda a vida que eram lisos - tolinha. e agora que os descubro cheios de caracóis (cada qual com sua casinha), é como se desabrochassem em sua plenitude, em todo o vigor da sua verdadeira natureza. como se, enchendo-me a cabeça de caraminholas pelo lado de fora, me esvaziassem um pouco as do lado de dentro.
em verdade, em verdade vos digo que, na média, ter adentrado a casa dos trinta me fez bem. mesmo sendo este um balanço quase tardio, já três anos passados, concluo: sim, fez-me bem, especialmente para a exuberância. deus meu, onde antes eu colocava meu rosto? por onde antes andava a minha cara, tão lavada, tão crua, de bastas e selvagens sobrancelhas caindo-me sobre os olhos e sem nenhuma maquiagem? como antes as marcas de expressão nuas de qualquer corretivo? e, epítome do desmazelo, supra-sumo da falta de autoternura, os cabelos crendo-se lisos, eu crendo-os oleosos, nós crendo-nos todos sermos nós iguais à máscara, e todos acreditando na ilusão assim tão bem forjada. minha máscara de nudez colada à minha cara.
agora uso maquiagem, e nunca antes havia mostrado ao mundo a cara tão limpa, a alma tão lavada. um brinde ao rímel e às saias, evoé!
e começam-me a despontar os primeiros cabelos brancos. não daqueles esporádicos, cabelos brancos acidentais da adolescência e dos vinte anos, pontuando dissabores eventuais ou alguma descompensação hormonal. não, estes de agora são firmes e fortes, brancos pontilhados de brilhos de purpurina. estes são pra valer, são filhos da lua que gesto em meu ventre, filhos das marcas que porto em meu rosto, filhos das raízes que me nascem no colo e hoje despontam no decote dos vestidos, filhos da puta que me habita a alma e venho aprendendo a conhecer, respeitar e amar. meus novos cabelos brancos são o apogeu dos meus novos cachos: minha coroa de fios de prata, marca da minha libertação.
brindemos a isso. saúde!
= = =
desde as 5h40 aqui, vim acompanhando o céu amanhecer; parecia tão cinza uma hora atrás, mas à medida que clareava foi se revelando do mais perfeito azul de abril. a propósito de como as aparências enganam.
= = =
o que uma sessão de dez minutos diante do espelho pela manhã não faz a uma mulher. sobretudo num dia de bom humor capilar.
(e ainda mais depois de uma noite frutífera. ;-)
22.3.07
merdas felizes
- Nós já fomos jovens, muito jovens e fizemos tanta merda que você não pode imaginar. Fizemos merda adoidado e acho que é por isso mesmo que sobrevivemos juntos... Porque você sabe né, a merda aduba.
21.3.07
tantas noites em flor
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio.
- Sophia de Mello Breyner Andresen
= = =
Aprendi aqui. E aprendi também que hoje é Dia Internacional da Poesia.
12.3.07
condensação
Transpiro e escorro da cabeça aos pés,
deixando uma cauda de açúcar e fel pelo chão.
Piso e ouço sblosh, sblosh a cada passo que dou.
Caminho escorregadio de lama fresca,
barro recém-lavado pelo temporal,
estrada longa de terra antiga que não levanta pó.
Ando tão líquida ultimamente:
lodo e musgo nas axilas,
pingos invisíveis ecoando na gruta dos ouvidos,
a vagina úmida de maresia.
Acho que estou resfriando
– hoje em dia, evaporo cada vez menos.
11.3.07
convescote
protejo os ouvidos com conchas de caramujo e búzios,
tranco a chave o azul dos meus olhos tristonhos;
os pêlos das narinas polvilhados de pólen,
a pele salpicada de pérolas,
a penugem do corpo besuntada de glitter
e mel;
girassóis trançados nos cabelos
e sementes brotando do decote,
entre seios fartos lotados de leite;
me atavio de miçangas coloridas,
uma saia rodada e estampas florais;
enfio anéis de brilhantes nos dedos
e, nos pés, sapatilhas de strass;
embrulho o cérebro num lenço de seda
e saio para passear.
Ao pisar a estrada dos tijolos amarelos,
minha vulva de vidro se estilhaça
e desabrocha-me – puf!
um par de asas no quadril.
10.3.07
narciso
de que minha matéria submersa
aflore
Meus ossos projetam
suas sombras magras nos degraus
estreitos
Minha carne suspensa
ofega
minhas vísceras azuis
expostas
(flutuam na lama espessa)
Por expectativa
as folhas mesmas silenciam
e as nuvens
Maquio meu rosto à espreita
de ver se o avisto
no espelho
Respiro
normalmente
Rabisco os cantos da pele,
grafite indecifrável –
(abraço meu berço)
como passatempo
Lagartas se arrastando nos galhos imóveis,
a vida transcorre
com calma
e ganha forma
= = =
ilustração: alyssa monks, "liquid"
descobri aqui.
8.3.07
múltipla
acocorada ao pé do borralho, olhando pro fogo.
benze quebranto, bota feitiço, ogum orixá,
macumba, terreiro, ogã, pai-de-santo.
Vive dentro de mim a lavadeira do rio vermelho,
seu cheiro gostoso d'água e sabão
rodilha de pano, trouxa de roupa, pedra de anil
sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim a mulhar cozinheira, pimenta e cebola
quitute bem feito, panela de barro, taipa de lenha
cozinha antiga, toda pretinha, bem cacheada de picumã
pedra pontuda, cumbuco de coco, pisando alho-sal.
Vive dentro de mim, a mulher do povo
bem proletária, bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa,
de chinelinha e filharada.
Vive dentro de mim a mulher roceira - enxerto da terra,
meio casmurra, trabalhadeira,
madrugadeira, analfabeta, de pé no chão
bem parideira, bem criadeira
seus doze filhos, seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida
minha irmãzinha, tão desprezada, tão murmurada
fingindo alegre seu triste fardo.
Todas as vidas dentro de mim:
na minha vida - a vida mera das obscuras.
- Cora Coralina
= = =
um achado daqui.
3.3.07
ó alice
hoje não consegui abrir a minha boca pra falar coisas que precisava dizer. (...) o mais fácil pra mim foi chorar. que é o que eu tenho feito abundantemente quando as palavras se recusam. quando não sei como faço pra me colocar, (...) eu calo.
ao mesmo tempo, (...) nada de cavar meu próprio poço, senão já viu. nem de cavar meu próprio fosso - aquele, cheio de jacarés que vão comer quem tentar chegar perto -, que é pior.
às vezes dá no saco, às vezes é tão difícil, às vezes dá a impressão de que não vai dar, não tem jeito, caput.
(...)
incrível como o outro nunca pergunta exatamente o que eu gostaria que perguntasse. saco, saco ser pisciana, é tudo tão pra dentro sempre, tão aidemim. pior: tem sempre um mas. pisam no meu pé, eu grito por dentro "C******!!!!", mas aí vem o mas: ih, olha, pisou no meu pé mas nem foi por querer, foi porque eu entrei de repente e confundiu o meu pé com uma barata cascuda. e tudo o que eu consigo dizer é (ui.) - e, se duvidar, ainda levo bronca por ter o pé baratesco.
(...)
quando eu falo nem sempre sou ouvida como gostaria. quando não falo, aí é que não sou ouvida mesmo. pensando bem, não é tão difícil assim de entender. duro é botar em prática.
juro que hoje não acordei assim, mas depois fiquei truncada. e fez um dia tão bonito.
tô com fome, mas a boca não abre nem pra isso.
28.2.07
me saiu de sopetão no meio de uma enxaqueca em plena madrugada
que me saltam arruelas e molas das orelhas,
parafusos e porcas em profusão
e caraminholas, minhocas e caracóis aos tufos
transformam meus cabelos em cachos
banais.
Meus cílios tremelicam suspensos
distribuindo beijinhos de borboleta no ar
simulando multidões de meninas-dos-olhos,
As pálpebras permanecem fechadas para balanço.
Vaga-lumes assistem a tudo de arquibancada
encarapitados na folhagem do jardim,
mordiscando biscoitos em silêncio, apagados
e incólumes.
24.2.07
frase do dia
- Aaah! Agora eu entendi: então, o três fica exatamente entre o dois e o quatro!
Diante da gozação generalizada, a pessoa tenta se explicar, mas claro que sai pior a emenda que o soneto:
- Não, gente, assim: é que ele vai e volta; quando vai, chega no quatro, quando volta, vem pro dois.
Explosão de gargalhadas. A amiga tenta consolar:
- Deixa pra lá. É que o óbvio às vezes fica sem sentido mesmo.
= = =
amo vcs. :-)
atenção ao sábado
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.
Domingo de manhã também é a rosa da semana.
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.
- Clarice Lispector, in "Para não Esquecer"
= = =
ilustração: S. Dalí, "Rosa Meditativa"
21.2.07
lagartona preta
do prisma do prédio me chegam os ruídos dos vizinhos. no ar fresco dessa hora, o som de um chuveiro me sugere que só pode ser um duende noturno que acaba de chegar do seu trabalho nas minas do fundo de uma montanha qualquer e prepara-se para deitar-se e dormir o sono dos justos antes que o sol nasça e lhe fira os olhos de lêmure.
ou talvez seja um elfo de orelhas e asas pontudas e transparentes, preparando-se para sua longa viagem matutina para o horizonte leste, onde abrirá os portões para a aurora.
quando tomar meu café termino de espantar os restos de sono dos ouvidos.
= = =
ok, a parte da lagartona pode ter sido influência do conto do Leitor (que volta e meia dá uma de autor agora, mas não quero entrar na seara das discussões sobre a autoria dos leitores em geral) ou, quem sabe, da "alice comentada" que ganhei de natal e li em janeiro.
à esquerda de quem entra
- Cecília Meireles
= = =
Labirintite
(subo e desço),
sou espiral, sou rodízio, sou rosário, sou rodopio,
sou girassol - sou banal.
Sou torcicolo, dor nas cadeiras, mestre-sala e porta-bandeira.
Moura torta, sempre tonta, sempre pronta
a oscilar – sou pêndulo, relógio de corda, molas e miçangas
pra fora, contas a pagar. Sou porta:
saúdo e dou passagem,
ou não. Sou ponta – espeto e espero.
Sou entre as entrelinhas e as estrelinhas,
com nariz vermelho e sardas de purpurina
no meio. Ora poço profundo e limoso,
minando água negra, fria e fresca,
ora flocos de nuvem em céu luminoso
de abril – acrobacias aéreas, piruetas,
névoa e náusea vesga.
Soco o ar anil indiscriminadamente, ao menor sinal
de dor ou felicidade,
e muito ainda nisso me disperso.
Tantas lágrimas me enferrujaram
as carrapetas das pálpebras.
Agora só choro sentada
e de olhos fechados:
como se meditasse.
20.2.07
momento post secret
Em toda canção
stronger than friction
- Contardo Calligaris, 21/01/07 - FSP
= = =
não resisti, copiei daqui.
= = =
será que o calligaris estava com "mais estranho que a ficção" na cabeça? tô com preguiça de procurar o texto original.
16.2.07
sucata
Vem, mas vem sem fantasia,
que da noite pro dia
você não vai crescer.
(Chico Buarque)
Hoje é dia de faxina:
estou de mudança.
Ordem geral nas gavetas.
Nos cantos.
Nos quartos.
Nos incômodos.
Tirar os móveis
e os imóveis
do lugar.
Mesmo os mais plantados,
os mais teimosos.
Mesmo os mais escuros,
devassar. Arejar. Espiar
e descobrir as teias
mais sólidas. Os bolores
mais incrustados.
As dores, as mais antigas.
Daquelas que dói só
de lembrar — quanto mais
de espanar. Botar
os fantasmas no lugar,
amassados camaradas
velhos de guerra.
E descascar o mofo
à pontinha de unha,
com cuidado, com muito
cuidado (mas mesmo),
pra não me arranhar.
Juntar então dolorosas
montanhas de entulho.
E com o lixo, depois
e ecologicamente correta,
fazer flores de papel-machê
coloridas e cheirosas
pra enfeitar a casa nova,
carinhosamente reciclada.
outras realidades
- O Leitor
= = =
Não podia ser mais preciso. :-)
torè kong!
= = =
Muchas gracias, Leitor. ;-)
= = =
Tendo esquecido o post interessante sobre um desses sonhos que andei tendo, pego então um sonho interessante e teço a seu respeito comentários inócuos e despropositados. Fazer o quê?
É a vida (como diria Manuel Bandeira).
= = =
Bem, e literalmente cá estou eu partida ao meio, me preparando pra encarar minha sessão semanal de fisioterapia pra solucionar essa profunda desorganização do meu quadril que vem me dando a sensação constante, desagradável e dolorosa de que meu lado direito inteiro do corpo está mais curto que o esquerdo. Fora um torcicolo crônico (do lado direito, claro) que me perturba já há quinze dias.
Pois então, o orangotango: uma mistura de King Kong, Rei Lu ("Sabadabadá, sabadabadú, sou o rei da macacada, sou o Rei Lu!") e elefante branco - como, aliás, soem ser os presentes de grego com que este inconsciente perdido e confuso que me habita costuma me brindar nas madrugadas.
E a floresta: de um verde escuro, úmido, profundo. Denso. Quase impenetrável.
Eu disse “quase”...
E uma estrada bem cuidada serpenteando pela mata, uma espécie de “estrada dos tijolos amarelos” de chão batido e pedrinhas, levando - para que Oz? Para uma Cidade das Esmeraldas fajuta, sem dúvida, cercada de uma paliçada de bambu e com uma grande fogueira comunitária no meio de meia dúzia de choças; onde eu seria imolada ao grande orangotango branco, que na última hora se apaixonaria por mim (mesmo eu não sendo loira nem ele sendo o King Kong), recusaria o sacrifício e me pouparia a vida. E casaria comigo, talvez?
Anyway, é nisso que dá tentar voltar atrás em sonho: você dá meia volta pra fugir e se depara com um portão barrando a passagem (na hora de entrar no túnel, tudo bem, né, claro que não tem portão nenhum; mas, na hora de sair, já viu: são outros quinhentos), um orangotango hidrófobo (e branco ainda por cima! Seria albino? Grisalho?), uma guria com cara de morta-viva vestida que nem uma Ártemis esfarrapada, pronta pra te dedurar quando você se prepara pra fugir, e, pra completar, um monte de canibais (os “súditos” do macacão) pintados igual ao pessoal da Timbalada e loucos pra te pegar. Mesmo ele não sendo o King Kong, nem sendo eu loira.
= = =
Às vezes me acho meio despirocada. E completamente incompreensível... :-P