31.12.08

com atraso, tomo a liberdade de compartilhar aqui a mensagem de fim de ano que recebi de uma nova grande amiga:

"Queridos e Queridas:
Em 2008 eu renasci das cinzas, abri a crisálida, saí voando, aprendi a brigar, enterrei os mortos, fiz as pazes com o passado, amei melhor meus pais, entendi umas coisas dos amigos, ajudei um ou outro a entrar na canoa que era dele, abri o peito, andei de bicicleta, dancei, lutei kung fu, esperneei, aprendi a calma e a confiança, achei que deus existe, encontrei um amor novo, bonito e sólido, emagreci, cresci o cabelo, fiquei mais bonita, comprei um chapéu, aprendi a ser mulher, aprendi a trabalhar pelo que eu quero e a ser mais generosa e menos violenta. Foi um puta ano. Foi o ano em que eu definitivamente voltei a acreditar.
Que 2009 seja mais legal ainda, com mais presença e menos ansiedade, com delicadeza e intensidade. A mudança está a caminho, cabe a nós inventar um jeito novo de viver.
Feliz Natal para os cristãos, Feliz Hannukah para os judeus, feliz tudo para todos de todas as religiões que eu conheço pouco. Mas sobretudo, feliz contato com o Deus que habita dentro.
E que a gente se veja mais, se tiver que se ver, ou se lembre com aquele sorriso no canto da boca, no meio de uma tarde na repartição, dos amigos que sempre estão.
Amo vocês, de perto ou de longe."

Feliz ano novo para todos nós.

Até 2009. :-)

18.12.08

o espelho me mostra um rosto que mal reconheço como sendo meu

O espelho me mostra um rosto que mal reconheço como sendo meu. Vejo olhos, nariz, boca; queixo, bochechas, testa. Sardas. Sobrancelhas, separadas por um vinco de incompreensão. Por mais que me esforce, as peças não formam um todo. Não consigo uma visão geral. Tudo me é estranho, embora vagamente familiar. Uma revoada de interrogações, como uma nuvem de gafanhotos devorando tudo o que encontram pela frente: plantações inteiras, florestas, bibliotecas, carros, casas, interferindo nos radares e sistemas de controle de vôo dos aeroportos e provocando desastres, quedas de aeronaves com explosões em série e centenas de mortos – agito as mãos à frente da cara para espantá-las.

Mas toda esta sofreguidão, o sentimento arquejante de urgência. Preciso decifrar o enigma deste rosto que me olha do espelho, à espera de ser visto.

16.12.08

larguei a mala quadrada e dura junto à porta pra catar a chave no bolso da saia

Larguei a mala quadrada e dura junto à porta pra catar a chave no bolso da saia. Girou com dificuldade na fechadura. Dei com uma salinha vazia, de piso gasto; botei a mala pra dentro e meus passos soavam meio ocos. Parecia que as paredes me espiavam.
Fechei a porta atrás de mim.
E senti que meus ouvidos se tampavam, como se uma pressão enorme – um barômetro ali teria estourado. Meio surda, percorri o apartamento, olhando tudo de longe; os olhos embaçados como se estivesse embaixo d’água, a atmosfera semilíquida difícil de respirar (com minhas guelras ainda tão incipientes). Não lembro nada do que vi.
Seis minutos depois, estava esgotada. Me arrastei até o colchão imundo no quarto e apaguei.
Dormi três dias seguidos.

O apartamento me olhava espantado.

12.12.08

na penumbra, o apartamento vazio cochilava

Na penumbra, o apartamento vazio cochilava. Sonolentas, as persianas empoeiradas e tortas filtravam a luz e abafavam o ruído constante da avenida. Os cômodos de pé direito alto, úmidos e frescos, recendiam a mofo e cabeceavam. Assim também o piso de pastilhas hexagonais supostamente brancas, encardidas pelo uso; os azulejos decorados com motivos fora de moda; as torneiras e ralos oxidados – uma delas (a da cozinha, talvez) ressonava, incapaz de conter um finíssimo fio d’água que deixava um rastro de ferrugem na louça rachada. No quarto, o armário corpulento de portas entreabertas, meia dúzia de frágeis cabides de arame na boca. O espelho do armarinho sobre a pia do banheiro, exausto e baço pelo tempo. Os tacos soltos no chão – desmaiados. A sonolência impregnava as paredes e se acumulava preguiçosamente junto aos rodapés. A casa toda dormitava pelos cantos.

Até que, num fim de tarde chuvoso, o apartamento adormecido abriu os olhos de repente; a respiração suspensa por uma fração de segundo, na iminência de – o som da chave na fechadura como que rasgando cortinas – e a porta abriu-se com um rangido lento.

7.12.08

ouvi falar de uma mulher

Ouvi falar de uma mulher – não lembro quem – que, após dezesseis anos de análise, teve um colapso nervoso definitivo e precisou ser recolhida a um asilo, convencida de que era uma aranha. Agora ela passa seus dias embrulhada em pilhas de cobertores, sobretudo no verão, na tentativa de excretar pelas glândulas sudoríparas fios para tecer sua teia. Até hoje só saiu suor mesmo, mas ela continua infatigável em sua determinação, em meio às cobertas empapadas.

4.12.08

Enquanto durmo (no fundo da minha caverna)


Enquanto durmo (no fundo da minha caverna), chove sem trégua há quarenta dias e quarenta noites; o céu baixo e sujo parece prestes a desabar.

Até que um dia uma nova trilha sonora me desperta. Em vez dos rugidos do temporal, são passarinhos catando grilos entre as folhas molhadas, restos esparsos de chuva pingando dos galhos nas poças do chão, pequenas mariposas marrons sacudindo a umidade das asas.

Abro a janela e faço um teste: atiro um punhado de penas brancas. Quando o vento as devolve secas, reconheço que meu tempo de hibernar terminou.
= = =
Foto: veio daqui

3.12.08

Camões

Reza uma das recentes lendas internéticas que uma prova de vestibular (da USP ou da Federal da Bahia, as versões divergem) pediu uma interpretação deste trecho de Camões*:

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.


Diante disso, uma vestibulanda fez a seguinte análise:

Ah! Camões, se vivesses hoje em dia,
tomavas uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.


Compravas um computador,
consultavas a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,

não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!


Se é verdade a história da prova de vestibular eu não sei, mas que é sensato, lá isso é.

= = =

*Não, NÃO é do Renato Russo!

1.12.08

Amor

Respirar
com
atenção

Silêncio...

Tempo
para ouvir
o vento
os grilos
a grama
as nuvens
os carros que passam
e buzinam na avenida.

Agite-se
com
moderação.

Desprendimento
Tempo
Aceitação

Atenção:
silêncio.

= = =

É fácil nos estabilizarmos para uma vida finita, pois é uma vida dentro de barreiras protetoras. Parece que estamos a salvo e seguros. De fato, não é fácil. O maior desafio é viver eternamente, responder à verdade última da nossa existência, identidade e morte. Compreender que somos feitos para a eternidade, vida não somente no mundo que está por vir, mas vida inteiramente vivida agora, excede o poder da imaginação. E estar inteiramente vivo exige tudo o que somos em cada momento.

- Laurence Freeman, OSB
("Perder para encontrar", Ed. Vozes, p. 87)
= = =
Foto: Achei aqui.

28.11.08

Preamar

beira do mar,
manhãzinha
areia clara e longa,
espelho d’água
marola breve,
espuma branda
sal na pele,
gaivotas
deixando seu rastro na areia,
e eu –

(...aaaaah)
aragem melada de maresia

flocos de nuvens amontoados ao vento

unicórnios azuis galopando no horizonte
e o céu...

= = =

Foto: encontrei aqui
= = =
(bom fim de semana...)

27.11.08

Desço determinada a larga escadaria, despedindo-me de seus mármores imaculados

Desço determinada a larga escadaria, despedindo-me de seus mármores imaculados. Descortino o vale abaixo a perder de vista, o caminho sinuoso desaparecendo no horizonte sob a aurora iminente.

A cauda do vestido esparrama nos degraus, cascata interminável de rendas e organdi. (O peso das jóias me enerva.) Ao longe, um casal de pássaros inicia seu canto matinal.

Desfaço-me das jóias, do organdi, das rendas, e – mantendo para uma eventual necessidade apenas três pérolas na mão esquerda – piso a terra do chão, descalça e nua. A jornada será longa.

Afasto-me de meu castelo nas nuvens e parto sem olhar para trás.

26.11.08

Sim, o corpo



Primavera
Sim, o corpo
desperta
espreguiça
e se espalha
se desdobra
e se esquenta
e se acalora
ribeirão de águas claras
murmulhando entre os seixos
e as curvas,
e os meandros
lá no fundo do quintal

o corpo sonha
sonhos de barro úmido, e molda
formas safadas no ventre
melando-me de argila líquida nos cantos – o calor
me apalpa e me morde
nos mais remotos recônditos
murmurando obscenidades
(...revoada de borboletas na cabeça)
o coração correndo às cabriolas
dispara aos pinotes sob o sol

depois de um longo inverno truncado
assistindo à vida da janela
meu corpo
lateja
os ossos, a carne, a pele, o frêmito
a vida
que urge
e dança
em mim.

= = =

24.11.08

o meteoro


Após a hecatombe
e a subsequente extinção de 90% das espécies vivas da Terra
(incluindo a quase totalidade dos dinossauros)
vislumbro, através da poeira que assenta,
a cratera recentemente aberta
no peito.

Munida de regador, minhas ferramentas de jardinagem
e um saquinho de sementes,
devidamente protegida do sol por um chapéu de abas largas
e calçada com grossas luvas,
ponho as mãos à obra:
bem aproveitado, o vasto campo dará um belo gramado
polvilhado de dentes-de-leão
e colorido de marias-sem-vergonha.

Foto: Bucknell University

= = =

Ausência
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

- Drummond

26.10.08

consolo na praia

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o
humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

- C. Drummond de Andrade

11.9.08

Quem eu sou

Tenho 34 anos, e eu nunca soube quem sou.
Desde o começo, o que eu era não bastava. Não servia. Então, comecei pela máscara. Era a máscara que eu carregava que me definia. Era ela que me impedia de sentir quem eu era, e me protegia de mim mesma.
Então veio o primeiro amor; o primeiro possível. Foi a primeira possibilidade de me relacionar com outra pessoa, o que era bom. Mas troquei a máscara por essa outra, e me transformei numa metade da laranja; uma das faces da moeda. Em vez de me tornar mais inteira, a relação me tornou meia.

Pude deixar a casa de origem, o ninho sufocante, a diluição familiar. Mas a relação acabou, e, sendo meia, fiquei só com uma metade.
A segunda relação veio em seguida, tentando emendar o buraco. Me agarrei e me envolvi nela com unhas e dentes. E me afoguei. Sem a família em que me dissolver, tentando me diluir na relação e, com isso, reproduzir a mãe e o pai, veio a depressão. Deprimi, porque precisava me encontrar no fundo do meu próprio poço. Deprimi porque, naquela relação que simulava a família de origem, mas não era de verdade essa família, eu podia ir ao fundo sem morrer. Havia a reprodução do meio familiar, mas não era ele; era uma relação que tinha algo de diferente, que me protegia e me permitiria sobreviver à provação.
Durante anos, então, me bati contra a dissolução. De água virei lama líquida, depois pouco a pouco mais pegajosa, barro mole, e cada vez mais consistente. Durante anos, vazei, derramei, desmontei, desapareci, para ir de novo juntando, remontando, aparecendo repetidamente, gradualmente de maneira nova, de maneira outra, a cada vez ressurgindo da lama e do barro um pouco mais sólida que da vez anterior.
Vazei de tudo: vazei dinheiro, vazei amigos, vazei corpo, vazei amor – que, uma vez vazados, escorriam pelo ralo e se perdiam. Há momentos em que tenho a sensação de que, aos 34 anos, não construí nada na minha vida; não tenho casa, não tenho carro, não tenho dinheiro.
Mas descubro, agora, que tenho amigos. Talvez tenha me concentrado em construir o mais importante, afinal. Construí pouco, quebrei muitos tijolos – tijolos preciosos se perderam -, mas o fato é que o pouco que construí, diante da intempérie, revela-se mais forte e constante do que eu poderia supor.

Tenho 34 anos e não sei quem sou. Estou, mais uma vez, órfã. E, mais uma vez, a solidão vem exigir que eu me defina. Hoje, sou capaz de encarar minha orfandade de frente. Com muita dor, mas sem desaparecer. Sem me diluir nessa dor rascante que me dilacera – dilacera, mas não desmancha. Hoje, sou capaz de suportar, e isso também é fruto de uma construção. É uma conquista.

34 anos. Estou diante de um espelho que me mostra um rosto que mal reconheço como sendo meu. Tudo me é estranho em mim, e o que reconheço é que não sei quem sou. Sou ainda aos pedaços, às partes — embora tampouco seja justo dizer “aos cacos”. Agora é juntar as peças e montar o quebra-cabeça; e decifrar o enigma desse rosto que me olha do espelho, à espera de ser visto.

É a hora da definição: tenho 34 anos e preciso descobrir quem eu sou. Pra saber do que eu preciso. Pra saber o que eu desejo. Pra descobrir o meu lugar no mundo, e ocupar esse lugar. E fazer dele, efetivamente, meu.

18.8.08

E foi então que aconteceu

E foi então que aconteceu.

Abri a porta e senti que a sala cheirava a ovo e borracha queimada. O papel de parede (tinha sido verde um dia) não passava de uma lembrança desbotada sob a poeira em crosta e caleidoscópios de bolor. Contrastava com a limpeza sem lustro dos móveis cafonas, singularmente despojados de qualquer enfeite ou mimo. A impessoalidade e o ecletismo da decoração conferiam ao apartamento um aspecto de depósito, ou de um cenário armado às pressas especialmente para a ocasião.

Junto à mesa de jantar, de costas para mim, uma mulher alimentava o filho num cadeirão de bebê. De onde eu estava, seu cabelo desgrenhado parecia sujo. Ela não desgrudava os olhos de um televisor preto e branco, embora a interferência fosse tanta que as imagens eram irreconhecíveis e o som não passava de uma chiadeira de ensurdecer. Enfiava a sopa roboticamente na boca do menino, sua roupa coberta de manchas, às colheradas.

O menino olhou-me com olhos inteiramente vazios e negros. Era a encarnação de todo o mal que já grassou no universo em todos os milênios e milênios da história passada, presente e futura. Fui tomada por um pavor medonho, senti-me desfalecer.

Ele sorriu. E o sorriso também era negro e vazio. Dentes pontiagudos de predador.

O pavor tornou-se um desespero que eu já não tinha como suportar. Se aquele mal me tocasse eu derreteria e ficaria para sempre imersa na água a ponto de congelamento, suas garras enfiadas na minha garganta. Melhor não existir mais, e atirei-me pela janela na esperança de escapar. Não de sobreviver, mas de não sentir mais.

Estava caindo de costas e vi o momento exato em que ele pulou atrás de mim, braços estendidos na minha direção, sorriso estampado no rosto, aproximando-se cada vez mais rápido, muito mais rápido do que eu caía, e entendi. Ele me alcançaria antes que eu chegasse ao chão.

Eu preferiria dizer que o medo foi imenso e fechei os olhos com força, com toda a força – quando abri, estava deitada de madrugada na minha cama, ainda com a recordação da queda vívida no meu corpo. Preferiria dizer que, angustiada, acordei a pessoa ao meu lado e passei as duas horas seguintes sendo consolada e protegida, sufocada pela sensação de iminência, de que ele surgiria na porta a qualquer segundo e só esperava para me torturar mesmo. Preferiria dizer que acabei conseguindo conciliar o sono outra vez, exausta, embora desde então tenha me viciado em pílulas para dormir e só consiga atravessar as noites com uma luz acesa na cabeceira.

(Mas a verdade é que ele me alcançou mesmo antes que eu chegasse ao chão, me abraçou, e, hoje, minha alma não me pertence mais.)

8.8.08

Houve o tempo em que o mundo era perfeito

“Houve o tempo em que o mundo era perfeito; um vale verdejante atapetado de flores, recortado em arabescos caprichosos por um ribeirão de águas claras; passarinhos e borboletas em profusão; coelhinhos e esquilos saltitantes; e pôneis de todas as cores. O céu imenso e azul; e as nuvens eram flocos brancos de algodão que vez por outra até choviam, mas a chuva era mais um folguedo de verão. E havia o arco-íris.

“Corria ao sol, descalça na grama, um vestidinho curto estampado, e dançava e brincava com uma mulher vasta e bela a quem chamava ‘mãe’. Seu riso desenhava covinhas nas bochechas e fazia-lhe cócegas na barriga; o colo era um ninho macio onde adormecia acalentada e plena, entre bocejos de satisfação.

“Até que, num canto remoto do vale, desabrochou uma estranha orquídea. Atraída primeiro por seu aroma, intrigou-a a flor de tão exótico aspecto; aproximando-se, percebeu entre suas pétalas um brilho sutil, e tocou-as – e a orquídea derramou entre seus dedos uma pequenina chave dourada.

“Correu a compartilhar com a mãe a descoberta. Para sua surpresa, porém, notou que, pela primeira vez, ela não parecia feliz.”

Na manhã seguinte, acordei com frio – e sentia frio pela primeira vez, trazido pelo vento cortante e pelo céu, carregado e baixo. Da noite para o dia, a vegetação estava ressequida e murcha, as folhas secas descreviam rodamoinhos no ar, o chão era só poeira e pedregulhos. Havia lajes e lápides de cimento espalhadas (eu que não conhecia o cimento até então, e como me amedrontou a aspereza!), e tufos de espinhos pontilhados – como gotas – de minúsculas flores vermelhas, e estátuas de pôneis, passarinhos, esquilos e coelhos por toda parte; e não compreendi que eram os habitantes do vale, petrificados.

As cores estavam agora esmaecidas pela luz difusa e cinzenta.

Percorri o jardim de fósseis até avistar, sobre uma mesa de concreto, dentro de um esquife de cristal, minha mãe adormecida, um ramalhete desbotado entre os dedos.

Ia chamá-la quando um cavaleiro de armadura refulgente despontou numa curva logo adiante, e veio em minha direção. Tomou-me gentilmente em seus braços, fez um gesto mágico com uma das mãos, e – plim, um imperceptível brilho de purpurina no ar e uma das touceiras engelhadas tornou-se, num piscar de olhos, um trono encantado, de ouro e pérolas luzidias, onde o cavaleiro me acomodou.

Exausta, depositei em sua palma estendida a chave que guardava ainda em minha mão direita. Senti meus olhos pesarem irresistivelmente enquanto uma bruma esbranquiçada descia sobre nós. Ainda julguei distinguir em meio à neblina, antes de mergulhar num sono sem sonhos, o cavaleiro cobrir com um corte de veludo negro o ataúde.

Tomara que me levasse logo dali.

7.8.08

Minha madrasta me escondia entre os dentes

Minha madrasta me escondia entre os dentes, embrulhada como um casulo em sua língua comprida, pegajosa e fina. Entretinha-se usando-a para fazer-me de pião; mas servia-lhe também de coleira e chibata, com a qual me submetia a uma pesada rotina de trabalhos forçados.

Já jovenzinha, aproveitei-me um dia de seu sono profundo e, de um só golpe, desvencilhei-me da língua, preguei-a no umbral da janela e, atirando-a para fora como um rolo de corda, desci por ela a parede da alta torre em que vivíamos.

Quando saltei ao chão, ainda ouvindo as súplicas e imprecações da megera, disparei a correr a toda a velocidade que me permitiam minhas perninhas atrofiadas. Na fuga, um circo mambembe me recolheu. Aqui encontrei casa e comida, aqui fiz meus primeiros amigos; levo uma vida nômade que muito me agrada, e sou paga pelo meu trabalho: entro todas as noites no picadeiro e exibo, no espetáculo de aberrações, minha espantosa habilidade para emitir silvos agudos, quase ultra-sônicos.

Embora até hoje os uivos de minha madrasta ecoem nos meus ouvidos e me despertem toda noite, evidenciados pelo silêncio das madrugadas.

1.8.08

Assim constatei que meu corpo é feito de fluidos

Assim constatei que meu corpo é feito de fluidos. Água. Sangue. Linfa. Bile. Pensamentos — os pensamentos jorram da minha gelatina mental. Tenho idéias exclusivamente aquáticas nas quais mergulho e, uma vez nesse estado de submersão — e daí à falta de ar e ao quase afogamento. Meus devaneios constituem toda uma flora e fauna submarinas, abissais, cheias de bichos que parecem plantas, plantas que parecem bichos e aqueles peixes de olhos bugalhudos, dentes aguçados e tão grandes que nem cabem em suas bocas ridículas e umas fosforescências de boate, luzes negras e néons pendurados em rabichos que saem de todo o corpo feito tentáculos, balangando, e são iscas para atrair suas presas – verdadeiras mariposas subaquáticas, estupidamente atraídas pela luz.

Minha cabeça é o aquário dos sonhos da família Adams.

31.7.08

E a verdade é que esta mera perspectiva me apavora

E a verdade é que esta mera perspectiva me apavora: só de pensar em habitar meu corpo, sentir-me dentro da minha pele, perceber o calor e o frêmito da minha carne, me dá calafrios. Sofro dessa ânsia por existir e do pânico de que, vindo a fazê-lo de fato, eu me parta em mil pedaços ao menor contato com a realidade.

De modo que tenho seguido uma dieta rica em gordura e açúcares, com a qual procuro inutilmente entupir minhas artérias e induzir algum enfarto fulminante, por total e insofismável incapacidade de circulação.

30.7.08

Às vezes me dou conta de que estou olhando pra trás há tanto tempo

Às vezes me dou conta de que estou olhando pra trás há tanto tempo que nem lembro quando foi que começou. Esperando alguma coisa que nunca veio, lamentando tudo o que foi, perdida num pântano gelado e fedorento, me arrastando, com a água ora nos joelhos, ora nas coxas, ora no pescoço, rodando, dando voltas sem perceber nem ir a lugar nenhum.

As partes do meu corpo dentro d’água é como se se diluíssem nela, e não as sinto. E o ar que respiro é úmido e denso e carregado de odores e miasmas, e inspirar é uma façanha penosa. (Outro dia vi na televisão um programa sobre a natureza de cada um. Pensei na sensação que me persegue há anos de estar imersa numa água fria, gelada, escura e concluí: sou de natureza molhada.)

É esse muco todo que me inunda, se acomoda na minha garganta e me vem do estômago porque penso demais. Quer dizer, eu sou fria e úmida por dentro, o meu muco é a lama do meu pântano musguento. O ar, uma neblina espessa que filtra a luz e cria uma claridade difusa e amarelada capaz de fazer qualquer um duvidar da própria existência do sol.

Sou filha da lama pegajosa, devoradora, movediça, e do céu baixo, do ar grosso, distante e imaterial (e ao mesmo tempo pregnante, ubíquo, invasivo; úmido, ele também). Então, durmo e sonho com o ar leve, fino e aberto; e com a terra, sólida, firme, concreta. No entanto, este lugar sem horizontes nem rumos nem caminhos é apenas excessivo, inconstante e estéril. Tudo é desolação aqui, e tudo o que faço é dormir.

29.7.08

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu

Parece que o coração vai inchando, inchando, inchando, inchando, inchando dentro do peito, e crescendo, e ocupando cada vez mais espaço, e crescendo mais e mais até parecer que vai explodir - só que, em vez de explodir, vai subindo pela garganta (e quase entala), e pula fora da boca, cai no chão e sai correndo feito um doido, aos pinotes, pra não voltar nunca mais.

28.7.08

Acordei no quarto abafado e seco, a claridade forte do meio-dia enfiando-se, branca e listrada, pelas venezianas da janela

Acordei no quarto abafado e seco, a claridade forte do meio-dia enfiando-se, branca e listrada, pelas venezianas da janela. Um zumbido ao mesmo tempo próximo e distante de moscas revoando. Ou talvez mariposas. Na sombra do canto oposto do quarto, acomodado na cadeira em cima das roupas que eu tinha despido antes de deitar – ou as teria jogado no chão? Ou as dobrara e depositara delicadamente, zelosamente, ao pé da cama? Ou as havia embolado com displicência, para então embebê-las em querosene e atear fogo, e nem o incêndio no quarto, nem o estrépito dos bombeiros com suas sirenes e machados, puderam arrancar-me do profundo torpor? (Mas, sendo assim, não deveriam as paredes enegrecidas e ainda encharcadas do rescaldo, e o fedor asfixiante da fumaça? A menos que se houvessem passado séculos e o tempo transcorrido se encarregara de apagar as marcas do incêndio com as próprias mãos.) Ou eu não estaria lembrando bem, e as tais roupas jamais existiram, e eu já havia chegado àquele lugar nua na noite anterior? – não sei, tudo é mistério – na sombra do canto oposto do quarto, acomodado na cadeira, um vulto me observava.

Não saberia dizer há quanto tempo esperava, mas percebia já um véu sutil de impaciência.

De pêlos arrepiados ao som compassado da sua respiração, sentei-me na cama com cuidado, como se o sentar-me me tornasse capaz de enxergar melhor na penumbra e assim divisar-lhe os traços, e perguntei: “Pois não?”; o vulto imóvel, a respiração inalterável.

As horas se escoaram – eu podia dizer pela cor da luz, agora menos dura, e o deslocamento da sombra pelos sarrafos da veneziana, e as câimbras e espasmos irresistíveis que me ferroavam os músculos como um enxame de vespas – e o vulto imóvel, a respiração inalterável, o véu sutil de impaciência que nos separava como uma lâmina.

Escuro lá fora já, e o silêncio da noite, eu empapada de suor não sentia mais as vespas, nem as mariposas, e o vulto imóvel, e sua respiração, e a lâmina riscando a pele, e os dias escapando em revoada –

E os dias sucedendo-se inexoravelmente, eu insensível como uma pedra e a lâmina cada vez mais concreta varando-me os ossos, e o vulto e sua imobilidade insuportável. As semanas acumularam-se em milênios, e não passávamos agora de duas sombras e uma muralha no meio, sozinhos num universo em ruínas, e a irrealidade cada vez mais esmagadora só não tinha ainda me matado de frio graças às teias tecidas por centenas de milhares de aranhas que me embalsamaram como num sarcófago.

E outros tantos anos-luz decorridos e a imobilidade nos reduzira a todos – gentes, vultos, sombras, cicatrizes, zumbidos e aranhas – a um tênue ponto de luz, um único grão de areia que, em sua solidão, era tudo o que restava do que fora outrora o conjunto dos eventos cósmicos em sua totalidade.

E quando a luminosidade débil do derradeiro grão do universo bruxuleou e ia morrendo, uma fração de instante antes de mergulharmos nas trevas e no caos original o vulto descruzou as pernas, inclinou-se para a frente – e na réstia de luz vi que seu rosto era idêntico ao meu –, olhou-me no fundo de onde antes ficavam meus olhos e perguntou, com a voz mansa e grave do tempo que finalmente se esgota: “quem é você?”.

Em criança, fui violentada avidamente todos os dias por palavras cruéis

Em criança, fui violentada avidamente todos os dias por palavras cruéis. Aprendi que a realidade era nua e crua, e dura. Um dia descobri um oco entre as raízes de uma árvore do jardim, junto ao muro, e desenvolvi o hábito de ali me refugiar da violência e da perversidade. Era a minha passagem secreta para um mundo subterrâneo no centro da terra, habitado por seres fantásticos e criaturas de lenda, um país escuro e úmido em que eu me enfiava sob as camadas de musgo que revestiam a terra e dali acompanhava atentamente as vidas das minhas quimeras.

27.7.08

Meu pai era um sólido bloco de ferro negro

Meu pai era um sólido bloco de ferro negro. Eu adorava sua potência, sua virilidade, sua autoconfiança briosa, seu porte altaneiro. Vivia na sua órbita; era para junto dele que eu corria ao menor sinal de perigo ou ameaça, e à sua sombra eu me sentia protegida e não havia nada que eu temesse. Até que um dia soprou uma rajada mais forte e vi meu pai trepidar, ranger e estatelar-se com estrondo no chão.

Ficou estirado, imóvel, a cara enfiada no pó.

Só aí parei para olhar bem e notei que ele não passava de uma estátua desprovida de espírito e carcomida pelos elementos. O que até então eu julgava ser sua voz retumbante não passava do vento soprando pelos buracos de ferrugem que eu acreditava serem sua boca, nariz e olhos — quando na verdade ele nada via. Permaneci muito tempo estática diante do ídolo oco que fora o centro da minha vida até ali. Não saberia dizer quando comecei a me afastar em passos lentos; perdi-o de vista; a esta altura, mesmo que quisesse voltar atrás, não saberia mais encontrar o caminho. (Deve estar lá até hoje. Arrastar tamanho peso seria tarefa árdua, e para quê? Inutilidade.)

A verdade é que esqueci-me dele por completo e hoje acredito piamente ter vindo ao mundo por obra e graça de alguma concepção imaculada. Entretanto, sua imagem retinta está gravada no meu espírito, e a prova é que nunca mais consegui deixar de enxergar força onde só existe dureza.

26.7.08

Desde pequena venho desenvolvendo a arte de berrar

Desde pequena venho desenvolvendo a arte de berrar. Recentemente, comecei a me aprimorar nos berros líquidos, que podem ser medidos não em decibéis, mas em metros cúbicos. Essa modalidade específica requer especial atenção para que a golfada não ricocheteie contra o berrador e o afogue. Trata-se de uma arte de alto risco. Exige ginga.

Hoje berro um pouquinho todos os dias, o suficiente para encher um jarro. Sacia a minha sede pelo resto do dia e economiza água. É bom, em tempos de aquecimento global e preocupações com o ecologicamente correto. No começo eu berrava mais, postada no meio da sala – mas incomodava os outros, não era educado. A vizinha de baixo reclamava do aguaceiro caindo todos os dias na varanda dela: por pouco não afogo suas petúnias premiadas. Decidi que teria mais mérito no berro controlado, e assim parei de berrar em vão. Passei a mirar em recipientes; especializei-me e só berro em potes. No entanto, sonho com o dia em que terei uma casa, e poderei regar o gramado com a gritaria.

24.7.08

Ninguém me escuta porque eu não falo

Ninguém me escuta porque eu não falo. Tenho olhos, orelhas, cabelo, cabeça, ombro, joelho e pé, mas não tenho boca. Tantas vezes eu me senti trancada no porão, berrando, esperneando e socando paredes, enquanto nenhum rasgo de som alcança o lado de fora. Olham pra mim e tudo o que ouvem é estática, shhhhhh. Houve um tempo em que eu acreditava possuir uma boca, mas firmemente costurada por uma inquebrantável linha de aço transparente. Fui a mil médicos que não viam nada de errado, até que um charlatão que havia comprado o diploma e afirmava realizar cirurgias espirituais incorporando o espírito de um médico húngaro dos tempos da Cortina de Ferro finalmente concordou em descerrar meu rosto. Depois da remoção, ainda fiquei 47 dias amordaçada antes de poder tirar as ataduras sozinha, em casa, diante do espelho. Tirei e fiquei olhando sem entender que, por baixo das suturas, não havia boca nenhuma; simplesmente não havia nada.

Não é porque certas coisas estão mudando

Não é porque certas coisas estão mudando que vou mudar de nome, apagar o meu passado e sumir no mundo. Gosto do jeito mais difícil - tentar ser outra sem esquecer quem fui.
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E esta sou e não sou eu. Nem toda inverdade é necessariamente ficção. Não obstante, meu mundo é selvagem e árido, inóspito como um deserto.