16.12.06

mão beijada


Lose something everyday.
- Elizabeth Bishop

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Mão beijada
Esta minha mão – às vezes
não sei bem o que fazer com ela.

Queria que ela soubesse.

Queria que ela penetrasse
os meus segredos, que explorasse
as minhas vísceras e me trouxesse
lá do fundo,
dos recantos mais remotos
do meu útero.

Queria que a minha mão me apontasse os caminhos
do meu íntimo, que percorresse
minhas distâncias e me tocasse
o núcleo, mas não.
Não sei bem o que fazer com ela.

Quem dera ela soubesse.

Queria que a minha mão me mostrasse.
Que me trouxesse um espelho, me abrisse os olhos,
se metesse nos meus sonhos
e me desvendasse.

Mas será que ela sabe?!

Queria que a minha mão desatasse esse nó na garganta
que me sufoca feito uma gravata
e com seus dedos tateasse
como pequeninas patas
o meu peito, encontrasse a chave
e o destrancasse.


... não. Quem sabe, se ela escrevesse...?

Queria que ela soubesse, e me tirasse
daqui.

10/10/2002

2.11.06

pessoal e intransferível

Perdi minha velha mãe: uma dama de 90 anos, há mais de uma década envolta no véu de uma enfermidade que a despojava de memória, beleza e graça. Contemplar impotente enquanto ela se afastava de mim e da realidade foi a um tempo fascinante, espantoso, e infinitamente triste.

Embora eu tivesse me defendido, nos anos em que ela já não me reconhecia, dizendo que minha mãe tinha morrido e ali havia uma velha dama de quem me coubera cuidar, era tudo mentira. Ergui essa barreira para levar a vida em frente com a ave sombria daquela dor pousada em meu ombro, tão presente quanto ela mesma se ausentava.

"Nunca fui tão filha como na orfandade."

- Lya Luft

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conviver com a minha avó de 90 anos e vê-la ser levada pelo Alzheimer me dá bem uma dimensão de como esta vida é efêmera. por outro lado, vejo o Alzheimer despojá-la, pouco a pouco, não só das lembranças, mas também das máscaras que ela levou uma vida inteira para consolidar e atrás das quais se escondia. vejo-a, agora, tornar-se uma pessoa brincalhona e de uma afetuosidade quase infantil que nunca antes conheci.

ser testemunha desse processo só reforça em mim o sentimento de importância, de urgência mesmo, de vivermos bem a cada momento, e do quanto cada momento é precioso.

30.10.06

delírios & brotoejas

Segunda-feira de sol, e calor.

Enquanto isso, na Sala de Justiça...

Febre, muita febre. As correntes subterrâneas de lava em ponto de erupção. Em ponto de ebulição. Em ponto de bala. Brotoejas.

Ontem: um domingo sísmico. A ponto de explodir, ou implodir. Terremotos internos, desabamentos. Lois Lane afundando na falha de San Andreas em Superman 1.

(Cadê o Kal-el pra me salvar? Ah, esqueci: ele caiu do cavalo, ficou paraplégico e até já morreu. E a última notícia que tive da Margot Kidder foi quando ela fez uma participação especial em Smallville. "Santa senilidade, Batman!")

Mas NÃO vou desistir. Pra Pequenópolis eu não volto nem amarrada. Eu sei o trabalho que deu chegar aonde estou.

Daqui não saio, daqui ninguém me tira.

Vou ali buscar um martelo pra derrubar este muro de kriptonita e já volto.

26.10.06

uma galinha

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"Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."

- Clarice Lispector, in “Laços de Família”

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ilustração: alan mcniel, "sleeping chicken"

("A série das galinhas começou quando vi um bando de galinhas ser arrebatado por um pé-de-vento e lançado pelos ares. Depois de pintar alguns rodamoinhos, comecei a me interessar pela imagem de galinhas aconchegadas, dormindo tranquilamente enquanto o vento sopra lá fora." - Alan Mcniel)

24.10.06

perpétuo socorro

(flores alienadas)

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Subia as escadas carregada.
Mas rasgaram minhas sacolas repletas de sonhos
e antes que me pudesse acudir
no escuro s’esparramaram todos.
Entredentes escapou um grito tardio.
Seus ecos me beliscam ainda, no silêncio, e me despertam.
E me confundem, pondo-me à busca urgente
(e às cegas pela casa escura)
de atender seu apelo inútil.

(Sampa, 19-20/11/1996)

23.10.06

insônia

Alta madrugada. Os grilos lá fora, o tique-taque do relógio da cozinha, o zumbido da geladeira. Será que tem mais alguém acordado a essa hora.

(Talvez uma velhinha, fitando com os olhos remelentos de incompreensão uma rachadura inexistente no teto sobre a cama, esperando resignada que os minutos passem, um por um, até começar a clarear e sua acompanhante perceber que ela não está mais dormindo.)

E. ressona ao meu lado e resmunga qualquer coisa. Está dormindo a sono solto: que inveja... Um vizinho dá a descarga – alguém que levantou pra ir ao banheiro, mas vai voltar pra cama e dormir outra vez. O gato dorme no sofá; suspira.

Os móveis não passam de silhuetas na penumbra. Todas imóveis - ou pelo menos é o que parece.

Um mosquito começa a zumbir no meu ouvido. (Saco.) Cubro a cabeça com o travesseiro - como é abafado aqui embaixo. Talvez fosse melhor acender logo a luz e ler um pouco – mas estou cansada demais pra isso, sei que as letrinhas vão embaralhar todas na minha frente. Os algarismos vermelhos no relógio digital vão se sucedendo implacavelmente: 1:24. 2:10. 2:11. Quantas horas eu vou dormir? De 2:10 até as sete são uma, duas, três... Sete não, pode ser sete e meia. Cinco horas e...

Amanhã não posso esquecer de comprar pasta de dente na farmácia. Papel higiênico também; acho que só tem mais um rolo.

Será que o mosquito desistiu? Arrisco tirar a cabeça de debaixo do travesseiro: aah, ar fresco, que bom.

2:47. Este lençol está ficando velho, tá cheio de bolinhas. (Ocorre-me: é tênue a linha que separa o lençol velho "no ponto" daquele que começa a ficar com bolinhas.) Quem sabe se eu meditar um pouco: procuro me concentrar na minha respiração. Ar que entra, ar que sai, ar que entra, ar que sai, ar que entra... A temperatura está caindo de novo.

Será que amanhã vai continuar chovendo?

3:02. Que coisa: tem gente que dorme com o ar condicionado ligado mesmo neste frio.

Passou um carro de escapamento aberto na rua.

3:18.

Começo a sonhar. Até que enfim.

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ilustração: s. dalí, "nature morte vivante", 1956

leituras


O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar as mãos na água; o agricultor lendo o tempo no céu – todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres humanos – a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo – ou pelos deuses – o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso.

E, contudo, em cada caso é o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.

- Alberto Manguel, "Uma história da leitura"

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ilustração: g. richter, "reading", 1994

19.10.06

iniciáticos

sonhei que me retalhavam em postas, depois juntavam os pedaços todos e crescia uma árvore imensa, imensa, imensa, de tronco grosso, galhos fortes, sombra generosa, que subia até o céu. então veio uma tempestade; o céu ficou cor de chumbo, o vento gritava furioso, e as gotas da chuva que caiu feito uma cortina d'água doíam de tão pesadas. acordei com a imagem daquela árvore tão imensa se sacudindo, batida pelo temporal, rangendo e gemendo como se sofresse.

mesmo acordada, ainda dava pra sentir a sua dor; de onde eu estava, ainda ouvia o seu lamento.

aí, lembrei das muitas tempestades da minha infância, do vento assoviando nas frestas das janelas daquele mesmo jeito, do barulho de portas batendo com força ao longe; e pensei neste inverno que não acaba nunca...

levantei, lavei o rosto, prendi o cabelo, calcei minhas meias para proteger os pés da friagem dos azulejos e fui para a cozinha fazer café.

desde então, meu coração parece que está lá fora em algum lugar, na chuva. não sei se está sozinho, com medo e com frio - mas o fato é que saiu, e não voltou até agora.

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("Tinha medo de enlouquecer, ao passo que dois milênios antes os homens ter-se-iam alegrado imensamente com semelhantes sonhos, na certeza de que representavam o prenúncio de um renascer do espírito e de uma vida renovada. Mas nossa mentalidade moderna olha com desdém as trevas da superstição e a credulidade medieval ou primitiva, esquecendo-se por completo de que carregamos em nós todo o passado, escondido nos desvãos dos arranha-céus da nossa consciência racional. Sem esses estratos inferiores, nosso espírito estaria suspenso no ar."

- C. G. Jung, in "Psicologia e Religião")


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Resistência
Então o que me resta agora
é juntar os cacos do meu coração suicida
que me pula do peito afora
corre contra a primeira parede e se espatifa
só pelo prazer de levantar
sacudir a poeira
e dar a volta por cima.
(1996)

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ilustração: p. cézanne, "le grand pin"

16.10.06

uma carta: fragmentos (ou: a arte de fazer resumos)

(burlesco familiar)
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Leitura dinâmica de uma carta de quatro páginas em Arial 10:
Subtexto
Espero que você esteja olhando os seus e-mails. Lamento profundamente por tudo o que já falei ou fiz. Sei que você está muito ocupado - desde a última vez que conversamos. Eu jamais me meti sem que alguém houvesse pedido. Acho compreensível e bonito o seu gesto, mas sinto-me profundamente afrontada. Realmente, você não tem noção. Mesmo não devendo satisfações a ninguém. Ela em geral só me procura para pedir alguma coisa - além das suas ocupações atuais. O que não sei se você sabe é que sempre digo e repito que eu gostaria muito de almoçar com você, suponho que por falta ou de tempo, ou de vontade. Afinal, eu também poderia tomar essa iniciativa. Não se trata de queixas ou acusações, acredito que ela já tem maturidade mais que suficiente. Eu simplesmente não tenho sabido como resolver. Pelo menos, um diálogo do tipo que eu conheço e que, na verdade, lamento muito e [do] qual me arrependo. Só por isso ainda não tomei a iniciativa de procurá-la: me falta coragem. Não conheço outra alternativa e, sinceramente, isso me desespera. E, pior, nos dois casos ela está convencida. Eu não ligo. Queria muito descobrir uma maneira de passar por cima do seja lá o que for que eu esteja sentindo ou de quaisquer que sejam os meus motivos. Isso não passa pela sua cabeça nem por um instante sequer? Nada mais interessa? Vai indo tudo aparentemente muito bem porque eu me afasto, porque eu não a amo. Preciso às vezes manter uma certa distância com todo mundo. Ela fala muito do que ela precisa porque não há negociação possível. E, no entanto, eu hoje acredito. Simplesmente não sei o que fazer se eles forem de algum modo contrários, e eu que me dane. Não tem outro ou. Não consigo encontrar uma solução. Era poder conversar sobre isso. Só posso falar por mim. Será que o desejo dela é grande o suficiente? Será que o amor dela por mim? Ou será que não interessa? Eu tenho que fazer das tripas coração, e não uma boneca. NÃO É CAPAZ DE ME ENXERGAR? NÃO LEVA EM CONSIDERAÇÃO? Hoje, essa é a minha maior limitação: está além da minha capacidade descrever no sentido de superar isso. Apesar de todo o seu amor por mim. Hoje eu ainda tenho pavor, na expectativa de que eu "conserte" as "falhas". Sou EU a ÚNICA responsável. Ela continua não sendo capaz de cogitar que provavelmente está além da compreensão além de mim mesma. Absoluta incompreensão desta família. Como se eu não existisse, mesmo que "me enxergar" seja algo. Você não tem idéia do quanto isso é foda. Sabe do que mais? Se coloque no meu lugar e tente: como é que você ia QUERER se aproximar? Esse é um dilema que me assombra: o que quer que eu faça, ter que viver com esse peso. Sei que devo ter sido confusa; peço desculpas, mas muito obrigada por ter lido até o final e me telefonado hoje. Pela primeira vez consegui. Sou uma pessoa muito "dramática", beirando o farsesco. Lamento muito.
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Dadaísmo pouco é bobagem.

15.10.06

auto-retrato

Revirando as minhas coisas em busca de um cacareco qualquer, encontrei outro dia no fundo de uma gaveta um antigo auto-retrato 3x4, tirado no início do século passado num daqueles fotógrafos lambe-lambe de praça.

Eu usava um macacão de cetim, branco com bolotas azuis, calças e mangas bufantes, com um tutu de filó no pescoço; minha coluna vertebral descrevia uma curva e pendia para o lado, o tronco sanfonado qual uma mesura de arlequim. A cabeça, com um parafuso a menos, estava desenroscada do pescoço e flutuava, quilômetros acima do resto, presa por uma fitinha vermelha amarrada com um laço ao meu pulso esquerdo. A moleira, pronunciada, claramente visível. Olhando para baixo, eu avistava, por entre as nuvens, as minhas pernas – dois cambitos – com meus pés no final, enterrados em lustrosos 752 pretos da Vulcabrás quatro números maiores, que sambavam como chinelos.

Na mão direita, minha varinha de marmelo para autoflagelação.

No rosto, o nariz vermelho, as maçãs com duas bolas rosadas, os óculos retangulares para quebrar o redondo em excesso e o sorriso forçado, à guisa de máscara e mordaça.

Recentemente, contam-me, um chef especializado em frutos do mar explicava num documentário como escolher bons peixes no mercado. Segurando o dito pelo rabo e deixando-o pender no ar, à mercê da gravidade, aquele que não é fresco, impróprio para consumo, mostra-se molengo, largado, hipotônico. O peixe fresco não, é rijo e teso – atenção, não confundir com peixe congelado, que é duro feito pedra e quebradiço como gelo. O peixe fresco é firme: hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.

Deparar-me com aquele corpo sanfonado e tombado para o lado me fez pensar na minha espinha dorsal, no meu tônus muscular, na qualidade da minha pele e em como preciso que eles estejam vivos e vigorosos e vigilantes para eu não virar uma minhoca na lama nem, pior, uma sardinha velha conservada em óleo, imprensada com uma dúzia de outras dentro de uma latícula numa gôndola qualquer do supermercado da esquina.

14.10.06

travessia


Meus olhos se fecham
Sobre meu ombro se abate a noite
como chumbo
Perambulo na escuridão
em busca dos sonhos perdidos
Meus cabelos molhados se espalham
por quilômetros ao redor
e se embaraçam às estrelas que flutuam
sobre o abismo
Mas tudo o que sinto é o meu cheiro
- e farejo meu próprio rastro feito náufraga
à deriva nas águas espessas
Singrando meu desalento (imundo)
até raiar o novo dia
sobre meu peito
adormecido

30/05/2004

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pela primeira vez fico alguns dias em silêncio neste blogue e aí venho e solto um petardo desses? ainda mais depois de um post "fofo" sobre free hugs e tal? tsc, tsc, tsc - puxa vida.

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(é que às vezes vulcões em erupção têm uma fase gelada.)

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foto: windshield rain, genevieve shiffrar

8.10.06

banho-maria

Tenho sentido um cheiro de mistério no ar, uma sensação de iminência. Ao mesmo tempo, uma necessidade irresistível de ficar quieta na minha concha. Como se este frio, esta chuva, esta umidade me dessem ganas de hibernar.

Como será que se sente uma semente enfiada na terra?

E entretanto, apesar da calma aparente, tenho uma sensação surda de torrentes de lava deslocando-se lenta mas inexoravelmente no subsolo. Poderosamente. O vulcão lá, parecendo adormecido; os pássaros voando tranqüilamente sobre a cratera, fazendo seus ninhos, cuidando da vida; os boizinhos pastando na encosta, as borboletas pra lá e pra cá, as moscas zumbindo, os aldeões locais cuidando das plantações... Mas a lava lá, no subsolo, o magma em correntes lentas, e poderosas, e inexoráveis. Toda a força da natureza em estado bruto e latente. O que vai acontecer? Quando? É um mistério. Mas que vai acontecer, em algum momento, ah, isso vai.

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É como se eu estivesse cozinhando lentamente em fogo brando - em banho-maria.

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Tenho passado meus dias em estado de reticências...

5.10.06

estrangeira

Je crois qu'il profita, pour son évasion, d'une migration d'oiseaux sauvages.
("Creio que ele pegou carona, para partir, com uma migração de pássaros selvagens")

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Outrora eu era daqui,
e hoje regresso estrangeiro,
forasteiro do que vejo e ouço,
velho de mim.

Já vi tudo, ainda o que nunca vi,
nem o que nunca verei.
Eu reinei no que nunca fui.

- Bernardo Soares, "Livro do desassossego"

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um grande silêncio.
desligaram o interruptor.
blecaute.
só o barulho do vento lá fora,
o som das folhas mortas varrendo o chão.

depois de acordar ontem com insônia
às 3:24 da manhã
- sim, está tudo bem, mas
estou em recesso.

4.10.06

as idades de zenóbia

"Aos dezoito anos, Zenóbia tinha olhos ávidos e não usava óculos. Os cabelos, de um preto instável, pendiam em breves ondas sobre os ombros. Seu corpo magro lhe impunha uma fragilidade que não tinha. Sorria sempre como se escondesse a face sob as sombras.

Aos trinta e dois anos, Zenóbia tinha olhos óbvios e ainda não usava óculos. As maçãs do rosto, de um rosa rubro, quase que encobriam o nariz miúdo. Os cabelos, reclusos. Uma linha – quase ruga – trazia à testa um ar de austera brandura. Mas nenhuma dureza no conjunto, nenhum escuro.

Aos quarenta anos, Zenóbia tinha olhos sóbrios e passou a usar óculos com aros de tartaruga. Os cabelos, curtos. O risco na testa, agora um sulco. Seu vulto era raro. O sorriso esquivo: seu ponto de fuga. Uma incerta elegância a tomava, quase absurda

Aos cinqüenta e oito anos, Zenóbia tinha olhos sólidos, sob os óculos de lentes turvas. No susto da idade aprendeu que ainda era cedo e quis experimentar tudo. Nos cabelos cinza, nenhum sinal de pejo. Imune ao peso do mundo, ela parecia não ter culpa ou medo.

Aos setenta e quatro anos, Zenóbia tinha olhos estóicos por detrás dos óculos de hastes curvas. Trazia o cabelo de nuvem rente à nuca. E apesar do luto, não perdia o lume. De tudo, mesmo das coisas soturnas, sabia extrair o sumo. Sua vida era o resumo de seu nome. Todos diziam que não morreria nunca.

Aos oitenta e dois anos, Zenóbia parece ter setenta e quatro. Os olhos, sob as lentes sem aro, estão ilágrimes. Os cabelos, ralos, de um branco insone. Já não há dor ou noite para a sua alma, é claro. Na aura da idade, já sabe quase tudo. E todos já pensam que ela é um milagre. Ou um sonho."


- Maria Esther Maciel, "O Livro de Zenóbia"

3.10.06

janelas

("ouro preto: homem e mulheres na janela")


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"Le véritable voyage ne consiste pas à découvrir de nouvelles contrées avec notre regard habituel, mais à developper un nouveau regard sur nos contrées habituelles."

("A verdadeira viagem consiste não em descobrir novas terras com o nosso olhar habitual, mas em desenvolver um olhar novo sobre as nossas terras habituais.")

- Marcel Proust

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pra inspirar um bom começo de semana... :-)

1.10.06

faxina

Sabático
Xampu na cachola:
fazer muita espuma
esfregar de escovão
tanto tutano
Condicionador:
desembaraçar dendritos
pente fino pra catar piolho
dos axônios
Limpar com cotonete
as dobrinhas do cérebro
Lavar com água abundante
e sabão neutro
Enxaguar
Secar à sombra

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"cuidado com a cuca
que a cuca te pega,
te pega daqui,
te pega de lá"

máscara

(mordaça)
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Lavar o rosto
molhar o gesso
que me cobre a cara
e degluti-lo
aos bocados
digeri-lo
mole,
como miolo
de pão.

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Eu agi sempre,
Eu agi sempre para dentro.
Eu nunca toquei na vida.
Nunca soube como se amava…
Apenas soube como se sonhava amar.

Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos,
é que às vezes eu queria julgar que as minhas mãos eram de princesa.
Gostava de ver a minha face reflectida,
porque podia sonhar que era a face de outra criatura.

- Bernardo Soares, "Livro do desassossego"

30.9.06

noite aberta (apontamentos - 3)

(estranhamento)

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"Não há certos nem errados, miúda. A vida é... a vida. Não há que d’zer-se. Não há sentidos no que faz-se ou não faz-se, (...) apenas sentimentos. Por isso sempre disse-t’ que agarrasses o que qu’rias co’as duas mãos." (Carlos Nascimento Silva, "A Casa da Palma")

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Rosa
Cheiro bom de sabão de coco resultado da mania de lavar sempre as mãos na pia da cozinha, era o que sempre me dizia a minha Menina, explicando porque gostava de mim.

Era mesmo lavando as mãos na pia da cozinha, pra preparar a comida, que eu estava quando vi o gato entrar na toca. Não tinha visto a minha Menina entrar, mas na mesma hora soube do que tinha acontecido. E me preparei, que a minha Menina, eu sabia, ia precisar de mim.

E, ainda bem, ela tinha o gato.

Passou o dia todo com ela escondida lá dentro. Daí, à noite quando a Mãe veio procurar a minha Menina pro jantar, ela já tinha de tal modo afundado na escuridão da toca que nem que quisesse conseguiria se desvencilhar do buraco, porque ela não ia poder sair carregando toda a escuridão lá de dentro. Ainda bem que o gato estava co'ela.

Fui espiar no buraco e vi que a minha Menina estava dormindo, com o gato enroscado nas pernas.

(...)

= = =

E depois, depois daquilo tudo, a Menina que tinha entrado no buraco com o nome de Clara, e que mas quando ela saiu era Nina, porque já era outra (e depois, depois daquilo tudo), ela virou Clara novamente.

E tudo foi esclarecido. Depois, depois daquilo tudo.

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(Mas sinto sempre um tanto ou quanto de remorso pela falta de uma [improvável] história lógica.)

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Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por eles possa chegar às infinitas possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
(
Florbela Espanca)

Rio, 1996

29.9.06

entre leão e unicórnio

Ontem, antes de dormir, ganhei um caderno em branco, que deixei à noite ao meu lado, na mesa de cabeceira.

Quando acordei, para minha surpresa, ele cheirava a jasmim. E estava todo escrito, da primeira à última folha, com uma caligrafia floreada que não é a minha, recheado de:
- histórias quixotescas
- casos quiméricos
- aventuras rocambolescas
- ilustrações filigranadas
- e poesias com uma delicadeza de renda.

Ao abri-lo, um beija-flor escapou voando.

Nada consegui fazer hoje o dia inteiro, absorta na sua leitura.

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"(...) Leões de sonho não rugem. Aquele levantou a cabeça, sacudiu a juba e firme sobre as patas retomou a sua tarefa de guardião. Nenhum sonho mais sairia das noites da rainha. Nenhum entraria. Nem mesmo aquele em que um unicórnio azul galopava e galopava, levando no dorso um rei para sempre errante."

- Marina Colasanti, "Entre leão e unicórnio"

ou isto ou aquilo

(entalhe)

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Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!


- Cecília Meireles, “Ou isto ou aquilo”

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Lado a lado

Eu do lado de cá sou orifício de alta pressão
Espirrando plumas e painas em aerossol. Histriônica.
Do lado de lá sou campos de margaridas gigantes
e dentes-de-leão. Mulher-biônica.

Eu do lado de cá sou maneira; do lado de lá,
assombração.
Do lado de cá sou madeira; do de lá, algodão.
Do lado de cá sou chaleira; do lado de lá, alçapão.
Do lado de cá, sótão. Do lado de lá, porão.

Do lado de cá, sou araponga
e do lado de lá, ribeirão.
Do lado de lá, areia movediça
e do lado de cá, furacão.
Do lado de lá sou festiva.
Do lado de cá, irritação.
Do lado de cá sou maquiagem;
do lado de lá, sedução.

Do lado de cá, sou cascuda. Do lado de lá, cansada.
Do lado de lá, profundeza. Do outro, mordaça.
De um lado, ácida. Do outro, árida.

Do lado de cá sou presa; do outro, surpresa.
De um lado, peso. Do outro, tristeza.
De um lado, vacilo. Do outro, vario.
Do lado de cá sou prisão. Do outro, confusão.

Eu do lado de cá sou fachada;
do lado de lá, fechada.
Do lado de lá não tem consistência;
do lado de cá, lassidão.

Do lado de cá sou espelho. Do outro, reflexo.
De um lado, entupida. Do outro, vazia.

Cá, fora. Lá, dentro.

Eu do lado de cá sou porém.
Do lado de lá, também.
Do lado de cá não sou eu.
(E, pra dizer a verdade, do lado de lá
também não.)

No meio, sou abismo.
Quase
i n t r a n s p o n í v e l.

“Os Ministérios da Saúde e da Infra-Estrutura, em ação conjunta
e mediante publicação no Diário Oficial da União, vêm oficialmente anunciar
que as obras de construção da ponte para atravessá-lo
já começaram.”

vestígios

(momento coca-cola)


= = =
Estou cheia de peças soltas nas mãos e não sei bem o que fazer com elas. Eu andava por aí com as mãos nos bolsos. Hoje, a mão quando entra no bolso encontra a chave de casa, e segura firme.

Sempre gostei mais da lua do que do sol. Sempre tive medo de espelho e hoje descubro que era o meu rosto que eu tinha medo de encontrar - por trás da máscara. O menino que me aterrorizava era o filho que meus pais tanto quiseram e eu não pude ser? Talvez.
Tudo o que eu podia era acordar. E acordava amarrada, amordaçada, mumificada num casulo que não se abria nunca. Não gostava do meu casulo-caixão, claro.

Agora que começo a despontar mulher, agora que começo a me encantar menina, não consigo falar com a minha mãe. (Tenho medo de que ela as mate.)

Passei a vida inteira de alma partida: a de lá habitava um mundo mágico; a de cá só disfarçava, pra não decepcionar. Em caso de desavença, a de cá se desdobrava pra transformar em realidade o reino encantado, em vez do contrário. E mentia.

Não consigo entender como o que eu faço neste mundo pode ter conseqüências e gerar frutos que me alimentem depois. Não entendo as noções de cultivo e colheita. Sempre depositei no outro o atender todas as minhas necessidades, que foram sempre todas supridas antes mesmo que eu as percebesse - não consigo entender como não pode ser mais assim, automático. Não entendo o “comer o pão com o suor do meu rosto”. Achei que, no dia em que eu me curasse, acordaria num belo éden encantado. Não me ocorreu que esse jardim teria de ser plantado e cuidado.
E agora, o que faço com esse terreno inóspito ainda com tanto por fazer? Esta terra por lavrar?

O que me consola é o ter um riacho irrigando o fundo do quintal.
Aproximo-me, vejo-me refletida junto à margem e resisto à sua vertigem.
Preciso me descolar do meu reflexo – da minha imagem e semelhança – e encontrar-me de novo comigo.

noite aberta (apontamentos - 2)

(essa chuva que não pára)


= = =

O gato
Eu vi quando a Menina entrou no buraco, e fui atrás. Fui atrás porque vi quando, antes, ela tinha se iluminado toda daquele jeito, e soube que, se ela entrasse no buraco sozinha naquele momento, ela ia estar se metendo sozinha numa escuridão muito difícil de enfrentar sozinha. E eu fui atrás pra ajudar, que gatos conhecem a escuridão como ninguém, especialmente aquele tipo de escuridão.

Eu vi que ela ficou aninhada na escuridão, sem ter percebido ainda o tamanho todo que estava à volta dela — porque ela não estava vendo. Mas gatos vêem no escuro, e eu via todo o tamanho infinito que podia engoli-la a qualquer momento, e ela nem fazia idéia ali aninhada numa cantinho da escuridão. Mas as coisas são assim mesmo, nós gatos que vemos na escuridão mais do que ninguém é que sabemos — quantas vezes as gentes estão andando na beirinha do abismo e não fazem a menor idéia. E é ridículo, às vezes elas estão em caminhos tão mais largos, mas têm vertigem, ficam com medo e caem. Como é que pode, elas confiarem tanto assim nos olhos, sem a menor noção de sentir com o resto de si. Confiam tanto assim nos olhos, que são totalmente cegos, ou quase quase quase isso.

Pois então eu vi a Menina ali achando que estava numa toca, a boba — ela estava em outro mundo e nem desconfiava. Porque quando as gentes se iluminam todas do jeito que eu tinha visto ela se iluminar, eu sou gato, eu sabia, quando as gentes se iluminam assim é uma hora mágica, e a primeira porta onde elas entram, qualquer porta, desde que seja a primeira, a primeira porta onde elas entram é a porta para outro mundo. E é só porta de entrada. A porta de saída elas têm que achar, ou então cavar a sua própria saída, e esse é o grande problema que elas têm. A maioria das gentes que se iluminam, assim como a Menina se iluminou, e entra por uma porta, a maioria dessas gentes não consegue sair nunca mais, porque ficam tentando sair pela porta que é só de entrada, e por ali a escuridão que elas carregam não passa.

Então era muita sorte da Menina ter um gato pra dar sorte. E ela ia precisar mesmo de sorte, se quisesse aprender a se livrar da carga de escuridão já amarrada nela (e ela nem sabia), se quisesse aprender a procurar ou cavar a porta de saída, se quisesse aprender com aquele mundo e levar o que aprendesse pro mundo dela. E ela ia precisar mesmo de mim, se quisesse sobreviver àquilo tudo.

Rio, 1996

= = =

(...) a vida. / Há que merecê-la.
- Thiago de Mello

27.9.06

noite aberta (apontamentos - 1)


= = =

"O momento assim surpreendido parecia conter um significado qualquer que lhe escapava, e a tudo se subordinava, como as notas de uma música. Geraldo Viramundo se sentiu mais só do que quando mergulhava no rio, mas era uma solidão feita de desamparo e saudade da infância — quando, minutos mais tarde, se ergueu e caminhou em direção à casa, percebeu que não era menino mais."
- Fernando Sabino, "O Grande Mentecapto"

= = =

Meninas
Pois eu sabia agora que a vida não é como costumava ser. A vida era festa luminosa e de repente deixou de ser para mergulhar num escuro maior que o mundo, e eu me assustei muito com aquilo tudo. Assustei com a grandeza que eu de repente vislumbrei pràs coisas e que antes eu não suspeitava. Assustei muito mesmo e principalmente com aquela grandeza toda vir tão de repente eu não sabia de onde. Assustei, sabe, com todo o imenso insuspeitado da coisa quando ela ainda não tinha acontecido: como podia ter vindo de tão nada, de onde eu nada suspeitava, de onde nunca houve indício?

Porque não tinha havido nada lá antes, ou porque estava lá e eu não via - então, o que tinha me feito ver assim tão de uma hora pra outra? Não sentia nada diferente em mim, como se me tivessem nascido novos olhos. E no entanto o mundo me aparecia sob novos olhos, e tudo palpitava em novidade infinita. Então, de onde vinham os novos olhos, ou de onde vinha a novidade? — e era isso que me assustava, o imprevisível da coisa.

Me assustava a idéia de que havia escondidos além do mundo que eu via e que assim, sem ter nada além dele - ou seja, sendo ele mesmo -, já era tão complicado em si mesmo. Mas tendo coisas que eu não via ficava ainda mais complicado, porque eu ia ter que fazer, também com o que eu não via, alguma coisa. Porque eu pelo menos ia ter que prestar atenção todo o tempo, vigiando pra ver quando e de onde aparecessem — e quem sabe então eu não descobria de onde vinham os escondidos?

— Eu então decidi que não ia enfrentar nada, e fui me enfiar num buraco no quintal.
— Eu então decidi ao contrário, que tinha mais mesmo era que enfrentar o escuro — pois se os escondidos se descobriam vindo de onde eu não via, eles só podiam vir do escuro que era onde eu não podia ver nada, eu que já tinha escarafunchado todos os claros e sabia que lá eles não tinham nada escondido. E fui me enfiar num buraco no quintal.

Passou o dia todo comigo escondida lá dentro.

Daí, à noite quando a Mãe veio me procurar pro jantar, eu já tinha de tal modo afundado na escuridão da toca que nem que quisesse conseguiria me desvencilhar do buraco, porque eu não ia poder sair carregando toda a escuridão lá de dentro. Chega uma hora que a gente só pode afundar, que é quando a gente envereda de tal forma por uma porta que ela não serve como porta de saída, só pode servir de entrada. E então era nisso que eu me via quando escureceu — eu tinha que procurar o que me servisse como porta de saída, ou então cavar o meu próprio caminho pra fora (se não quisesse ficar o resto da vida presa ali no escuro).

Rio, 1996.

= = =

ilustração: helenbar, "entrando na toca do coelho"

la vida es sueño

(elogio da cegueira)

Sueña el rico en su riqueza,
que más cuidados le ofrece;
sueña el pobre que padece
su miseria y su pobreza;
sueña el que a medrar empieza,
sueña el que afana y pretende,
sueña el que agravia y ofende,
y en el mundo, en conclusión,
todos sueñan lo que son,
aunque ninguno lo entiende.

Yo sueño que estoy aquí
destas prisiones cargado,
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño:
que toda la vida es sueño,
y los sueños, sueños son.

- Calderón de la Barca, "La vida es sueño"

26.9.06

quem faz um poema

"Quem faz um poema abre uma janela
Respira, tu que estás numa cela abafada
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
para que possas, enfim, profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado."

- Mario Quintana

25.9.06

despertar

(despertar)
despertar, ou: depois de um longo e tenebroso inverno (a porta se abriu)
Saí de mãos no bolso, segurando firme as chaves de casa. Não sabia ao certo se serviriam na fechadura na volta, mas tinha de arriscar. Não dava mais: eu precisava ver se ainda havia gente no mundo.

24.9.06

caracol

Carrego minha casa comigo
feito um caracol.

Minha casa são os meus livros,
os meus escritos,
minhas palavras;

minha casa são os meus gatos,
os meus filhos,
os meus amigos,
o meu amor.

Minha casa é o ar que eu respiro, o peito pleno,
as costas retas, as pernas firmes,
o abraço que me dou.

Minha casa é o regaço onde me refugio,
o seio que me alimenta,
o acalanto que me tranqüiliza.

Minha casa é o meu pedaço de chão;
carrego-a no colo com cuidado.

A minha casa é o meu tempo.

Carrego minha casa pelo caminho
e ela me leva consigo.

= = =

Pra Shi.

23.9.06

instantes

= = =

Clarice, sempre ela:

“Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já, que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. (...) Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido.”

Depois dela, eu às vezes tenho a impressão de que não me sobrou nada pra dizer.

(Clarice Lispector, "Água-viva")

22.9.06

uma mulher é uma mulher ainda que

Uma mulher é uma mulher ainda que.
Palavras e formas não comportam o conteúdo.
Uma mulher pode ser um jeito
Uma costela, um defeito.
Uma mulher transborda pelos cantos
Enche as medidas
Contorna o desafino
Toca punheta e toca sino.
Uma mulher pode ser um grito
Uma barriga
Um precipício.
Uma mulher pode ser um abismo ou um porto
E pode ser os dois
E é.

Maria Rezende

20.9.06

carta ao filho ou filha que virá

Filho ou filha que já amo tanto
e que trago comigo desde sempre,
antes mesmo de carregar em mim;

você que pra mim por enquanto é sonho
com dia e hora pra se realizar:

Te espero com música nos olhos,
com uma felicidade mal-contida que me escapole pelo canto dos lábios,
com o coração palpitante, o peito arregaçado em flor.

Sou toda pétalas pra ti, toda frutas,
terra, leite e mel pra te dar.
Pra ti, entrego-me toda em doçura.

Não sei onde você está agora, nem quem você é, nem o que virá
a ser; e mesmo assim, mistério dos mistérios, já te amo.
Já te amo tanto e quando você chegar quero tanto te amar
que nem sei dizer como, nem o quanto. Já te amo tanto
e tudo o que quero é aprender a te amar, te acolher, te respeitar,
e espero te ajudar a ser uma pessoa boa e feliz.

Peço incessantemente a Deus que te faças uma pessoa feliz.

(Você de certa forma também me dará à luz.
Trazer-te comigo, aliás, já é dar-me à luz a cada dia da minha vida.
Rogo que de alguma forma eu te transmita
um pouco da luz que você me dá só por já estar aqui,
na minha esperança.)

Mal vejo a hora de te conhecer, meu filho ou filha que amo tanto assim.
Eu e tua outra mamãe, que nos amamos muito, preparamos
uma família feliz pra te receber.
Te queremos muito, filho nosso ou nossa filha,
e construímos nossa casa com cuidado e carinho pra você:
teu quarto, de dia, que será cheio de sol e espaço pra crescer
e, de noite, teu berço, esculpido em madeira e veludo de sonho,
doce e macio pra você repousar.

Vamos passear pelo mundo e descobrir muitas coisas juntos?

Quero muito ser tua mãe e espero
poder te ajudar no teu caminho.
Filha ou filho tão amado, queria muito te pedir “vem logo”,

mas não quero,
pois te quero afinal do teu jeito, e no teu tempo.

Filho ou filha querida, venha então,
que esta mãe tua te espera simplesmente
(e tua outra mamãe também)
com amor.

19.9.06

expectante

(nem te carrego ainda no ventre mas já te sinto
mexer-se dentro de mim, grávida que estou
da tua idéia.)

= = =

ilustração: adivinha? ;-)

libação (elisa lucinda)


(bananeiras)

É do nascedouro da vida a grandeza.
É da sua natureza a fartura
a ploriferação
os cromossomiais encontros,
os brotos os processos caules,
os processos sementes,
os processos troncos,
os processos flores,
são suas mais finas dores

As conseqüências cachos,
as conseqüências leite,
as conseqüências folhas,
as conseqüências frutos,
são suas cores mais belas

É da substância do átomo
ser partível produtivo ativo e gerador
Tudo é no seu âmago e início,
patrício da riqueza, solstício da realeza

É da vocação da vida a beleza
e a nós cabe não diminuí-la, não roê-la
com nossos minúsculos gestos ratos
nossos fatos apinhados de pequenezas,
cabe a nós enchê-la,
cheio que é o seu princípio

Todo vazio é grávido desse benevolente risco
todo presente é guarnecido
do estado potencial de futuro

Peço ao ano-novo
aos deuses do calendário
aos orixás das transformações:
nos livrem do infértil da ninharia
nos protejam da vaidade burra
da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz
daquilo que ao nos aumentar
nos amesquinha.

A vida não tem ensaio
mas tem novas chances

Viva a burilação eterna, a possibilidade:
o esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
a duração inútil dos rancores

Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
a vida inédita pela frente
e a virgindade dos dias que virão!

15.9.06

Tempo de

(esperança)
"a falta de imaginação termina com qualquer coisa, das atitudes mais complexas às mais simples. como não colocar um ingrediente a mais ao seguir uma receita? é inevitável. os melhores cozinheiros são os de olho. minha avó nunca anotou nenhum de seus pratos, porque me dizia: 'a comida é que me diz quando está pronta, não eu'.

(...) o desejo não combina com seguranças e senhas. o desejo é não saber o que vai acontecer depois."

Carpinejar ("Distância e distanciamento", in O amor esquece de começar)

14.9.06

transição

"retrato de família"
= = =

Meus dias de samambaia, chorona por parte de uma,
cacto por parte do outro,
estão chegando ao fim.
Curiosamente, tanto uma quanto o outro
andam mudando dentro de mim.
Uma, neste momento, é assunto delicado
que ainda não sei dizer;
faz-se um grande buraco negro dentro da minha boca
toda vez que tento preenchê-la com palavras a respeito.
O outro, com as porradas da vida,
parece que está virando um cacto desdentado,
que coisa, anda espetando menos.

Mas que sei eu
- se mal consigo saber de mim, que dirá dos outros.

Pois eu, enquanto futura-ex-samambaia,
venho por meio deste declarar
meu desejo de me transplantar deste xaxim
e lançar raízes direto na terra
como alguma árvore interessante,
de caule sólido e frondosa copa,
das que dão sombra
e frutos.

= = =

certo, certo, ando desejando muito e realizando pouco, talvez. ou não, sempre fui super lenta na superfície, mesmo.

(fico avisando "eu vou!... eu vou!... olha que eu vou!..." um tempão, até que chega uma hora, vão ver e eu - puft!, já fui. pois então: de repente agora é mais uma daquelas horas em que eu fico "eu vou!... etc." e daqui a pouco, quando forem ver, puft.)

então, não é que as coisas aconteçam de repente, é que eu sou lenta na superfície mesmo, mas (que nem tartaruga) debaixo d'água até que eu me mexo direitinho.

de qualquer modo, é desejando que se começa, não?

presa fácil

tear
a teia renitente
da aranha
é perfeitamente
pertinente
neste instante

= = =

a meteorologia informa: a umidade relativa do ar em 9 estados brasileiros caiu para menos de 20%. a defesa civil encontra-se em estado de alerta. elevado risco de incêndios e desidratação.

= = =

enquanto isso, na sala de justiça...
minhas neuroses andam mais assanhadas que um bando de pererecas no brejo. tem sido difícil controlar as bichas.

deve ser a desidratação iminente.

12.9.06

fantasmas...

faz semanas que tento criar coragem pra ligar pra ela.

= = =

Oração
Te perdôo por te trair. (Chico Buarque)

...carrego desde pequena
teus dentes afiados
me roendo os ossos,
me haurindo as veias,

e tua sombra que arrasto,
pendurada nos ombros,
me arriando as costas
feito um lastro,

tuas mãos nos meus calcanhares
aferradas feito grilhões –

levo o teu peso
no meu coração
como se fosse meu;
a minha pele
fina e anêmica
como se fosse eu
a assombração.

E quando te olho
não é o teu rosto que vejo,
mas o buraco, e o susto,
e os espectros, e as bruxas medonhas,
os labirintos e pesadelos e as insônias
i n t e r m i n á v e i s, abissais
da minha infância.

Me perdoa,
porque não solto este fardo;
me perdoa porque eu me exauro;
porque não te perdôo;
porque não me perdôo;
e não quero mais.

A tua bênção,
eu te peço, mãe,
e o teu perdão
pra redimir os teus pecados
e os meus,

Amém.

degelo II


Degelo
Não sei por que
este cheiro teimoso de terra molhada
que não passa,
esta umidade de barro nos pés
– vou tomar banho, tiro as meias
e estão cheias de lama –
o cabelo melado de orvalho.
Esta sensação de amanhecer
que não entendo, a sensação
de estar cercada por uma revoada
de borboletas,
não sei por que.

E o meu corpo ainda cortado ao meio
(recompondo-se, mas ainda cortado ao meio),
este formigamento,
esta sonolência.

Aninhada no meu casulo,
sonhando com sementes,
dentes-de-leão
e primaveras,
não entendo,
só espero.

9.9.06

degelo I


(cidade dos sonhos)

Vocês verão
ela vir entre icebergues na primavera
pra espantar as moscas
jogar fora meus óculos e minha miopia
desencantar

e então não sei

(Rio, 21/06/2004)

= = =

(suspiro)

5.9.06

madrugada



Hoje à noite choveu tanto
e sonhei com amigos distantes e terras a conquistar.
Acordei ainda escuro
(ainda toda a casa dormia)
e ganhei as ruas, fui ver a cidade
sob as últimas gotas de chuva.
E, na penumbra do amanhecer,
cheguei a tempo de ouvir o coro de grilos
e elfos, cantando na grama
os resquícios de sombra.

(1999)

= = =

foto: "going home" - genevieve shiffrar

4.9.06

dá licença...

...que eu bem ganhei um desenho feito agorinha, especialmente pra mim! :-)



valeu, albini!
(e pensar q tudo começou com um tal de elefante... ;-)

= = =

ps: o desenho tem a ver com uma certa novidade de uns dias atrás...

a arte de amar, ou: nada como um dia após o outro


pôr-do-sol visto da ponte, voltando de niterói há uns anos atrás, com o lula de cabeça rachada igual sambalelê depois de uma cabeçada num cano - lembra disso?
nada como um dia após o outro, meu amigo...
= = =

A arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

(Manuel Bandeira)

= = =

Garoa
e se hoje ele voltasse...?

pára tudo:

apagar a luz
e encarar o bicho
debaixo da cama
que toda noite
tenta pegar o teu pé.

a noite em branco...

...aí,
o toque da alvorada...

espreguiçar-se
abrir a janela
botar as manguinhas de fora
sair na rua
e deixar a chuva
escorrer pela cara.

pra lá da ressaca
unicórnios azuis
cavalgam no fim do mar
embolados com as nuvens.

é só prestar atenção.
= = =
ps: "azul" desse jeito vc fica ainda + parecido com um barbapapa... ou com o blu, aquele "fantasminha" da mansão foster para amigos imaginários. ;-)

eu quero ser um barbapapa


Esta é a família Barbapapa
Pra nos contar
Que cada um dos Barbapapa
Pode mudar de forma e jeito
Muito barba satisfeito
Por se transformar

Barbapapa é rosa é cor-de-rosa
É mais rosado que uma rosa
Barbamama é igual carvão
Um preto cor de escuridão
Barbazoo é amarelo
Barbalala é um verde natural
Barbacuca é alaranjada
Com laranja, um laranjal

Barbatinta é cabeludo
É preto e como adora ser pintor
Às vezes tem manchinhas de outra cor
A lilás é Barbabela
Barbaclic é muito azul
Barbaploc é valentão
Vermelho como um camarão
E todos os Barbas aqui estão

Eu quero ser um Barbapapa
Quero brincar
Ser da família Barbapapa
Poder mudar de forma e jeito
Muito barba satisfeito
Por me transformar

Nesse meu jeito Barbapapa
Quero brincar
E eu quero ser um Barbapapa
Eu quero ser um Barbapapa
= = =

3.9.06

uns dias chove, noutros dias bate sol


Uns dias são de chuva;
uns dias são de sol;
uns dias são de chuva;
uns dias são de sol;

uns dias são de chuva...

= = =

("Mas o que eu quero é lhe dizer
que a coisa aqui tá preta")

1.9.06

é tarde! é tarde! tão tarde até que arde!

"é tarde! é tarde! tão tarde até que arde! ai ai meu deus! alô adeus! é tarde! é tarde! é tarde!"
- Coelho Branco

= = =

O radinho de pilha entre os ombros
Uma senhora bem simples rodou e rodou a vitrine de uma loja, até que entrou. Pediu para "experimentar" um radinho de pilha. "Posso testar?". A atendente pensou que ligaria o rádio. Mas testar era colocar o aparelho nos ombros, para ver se pousava bem nos ouvidos. Mexeu-se muito até que encontrou uma posição confortável para o radinho. E amansou os olhos por alguns minutos como se ouvisse uma estação imaginária. Cerrou os olhos e rebolou o queixo devagar. Juro que ouvi a música que não existia apenas acompanhando seu rosto.
A atendente irritou-se com a demora e perguntou se ela levaria o produto. "Vai pagar com cartão de crédito?". Ela respondeu que "mais ou menos" e saiu.
Não gosto de chamá-la de senhora. Vou chamá-la de Alice. Alice experimentou o rádio como quem estava se vestindo, como quem prova comida, como quem testa um travesseiro ao dormir. Ela colocou seus longos cabelos de trigo ao lado para calçar o som. Abençoou a rua do seu pescoço. Como uma rosa que não se apequena com a água entre as pétalas. A água, uma pétala que não murcha.
Não temos mais paciência para experimentar um amor. Colocar as roupas antes de tirar. Dentro da gente, há sempre uma pressa que aponta: "vai levar?" Não fechamos os lábios para lembrar ou mastigar as palavras. Há sempre alguém que acelera o relacionamento. Que agride antes de compreender, que julga antes de conviver, que pretende ler sem se aproximar da caligrafia. O amor não é suspeita, é superar a desconfiança. Todos se conhecem sem ao menos pedir permissão para entrar, licença para sentar e puxar a cadeira. Como se soasse um zumbido de "agora ou nunca?". Nunca será se não houve véspera, nunca será se não haverá tempo de ser depois.
Queremos um amor rápido, não um amor constante, não um amor com as medidas do corpo. Ou com as medidas da voz nos ouvidos, que não seja largo demais nos ombros, nem pesado demais para carregar de um lado para o outro da casa. Como o rádio )de Alice.
Pressa não é urgência. Pressa é pular para o final. Urgência é precisar todo momento e não deixar o começo.

Fabricio Carpinejar

(Ilustração: Helenbar)

= = =

Pra começar o fim de semana sem pressa...

o serviço meteorológico informa

"No Rio de Janeiro, previsão de tempo parcialmente nublado a encoberto, sujeito a pancadas de chuva esparsas. Temperatura em queda. Possibilidade de nevasca no fim do período."


= = =

Frente fria
Faz dias que um frio incontrolável me domina.
Chego a ter medo de abrir o armário
e dar de cara com uma colônia de pingüins
instalada na gaveta das meias,
ou descobrir uma foca entre as minhas calcinhas,
ou encontrar um bloco de gelo
boiando na pia da cozinha.

Hoje de manhã resolvi tomar uma providência.

Acendi uma fogueirinha dentro do meu iglu
e preparei um litro de café com gengibre e canela;
vesti minha suéter vermelha,
coloquei minhas meias de lã,
minhas pantufas de emergência
- e assim, devidamente encasacada,
saí pra fazer bonecos de neve e tratar de aproveitar
enquanto o inverno não acaba.

= = =

HAROLDO: Tubarões de neve?
CALVIN: Esse aí já era.

segredo


(cá pra nós: acho q tô com a taramela da poesia solta outra vez!)

31.8.06

pátina

Janelas abertas
azuis, verdes, vermelhas, amarelas.
Venezianas, cortinas de renda, vasinhos de flores no parapeito;
o café preto fumegante,
canequinha de folha na mão.
Lá dentro um relógio na parede
faz tique-taque sem pressa.
O cheiro de pão de queijo quentinho vindo da cozinha,
chão de cimento queimado,
as paredes caiadas de branco,
móveis recém-encerados
e um zum-zum de bicho que voa em algum lugar.
Descascar distraída o verniz do batente com a pontinha da unha.
Chinelo de dedo pela calçada,
o musgo nos paralelepípedos,
bicicletas pelas ladeiras...
- Eu tô voltando, mãe.
Já tô voltando pra casa.

= = =

Dois poemas assim, puf!, em dois dias. Acho que a minha poesia, depois de um retiro sabático de 6 ano e meio, voltou - desse jeito, meio que mineiramente.

(Deve ter muita história pra contar; será?)

Amém.

= = =

Pátina:
Substantivo feminino
2. oxidação das tintas e sua mudança gradual decorrentes da ação do tempo e da luz
5. (Derivação: sentido figurado) o envelhecimento
Ex.: a p. do tempo não atingiu a elegância daquela senhora.

;-)

30.8.06

recém-saído do forno

Manifesto
Outro dia cheguei num lugar
aonde já não ia há muito tempo
- tanto, que tinha até esquecido.
Era um lugar de céu límpido e claro
um ar fresco de alto de montanha
e um solzinho gostoso pra me esquentar.

Daí me deu uma tristeza imensa
por já não ir lá há tanto tempo,
por não lembrar mais
(de tanta pedra que eu carrego)
como era me sentir leve de vez em quando.
Foi então que percebi
quanta porta fechada carrego dentro de mim,
quantos nãos digo pra mim mesma o dia inteiro,
todos os dias,
e me tolhem os movimentos,
me cortam as asas,
não me deixam respirar.

Está na hora de dar um basta.

Isto é um manifesto:
CHEGA DE PORTAS FECHADAS.

Pretendo começar a abri-las todas, uma por uma;
e aquelas que não forem mais necessárias, demolir.
Aliás, pôr abaixo paredes inteiras,
sempre que possível.

E, no espaço assim aberto,
plantar um jardim e
soltar os meus bichos
- e rolar na relva com os leões,
subir a correnteza dos rios com as carpas,
esvoaçar entre as flores com as borboletas,
cavalgar unicórnios e libélulas
e depois descansar nas nuvens,
aninhada em conchas de madrepérola.

Para enfim reencontrar
no espaço
a paz que guardo dentro de mim.

(Rio, 30/08/06)

ilustração: laini taylor (essa moça é uma danada! ;-)

mundo mundo vasto mundo

sabe o que é? o que vale é não ter nem poucos nem raros amigos como o homem atrás dos óculos e do bigode.
gostei muito da nossa conversa anteontem.

"if you tell me i can help you" - exploding dog
(se você me disser o que é, posso te ajudar. ;o)

Poema de Sete Faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus,
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

(Carlos Drummond de Andrade)

nove meses

Rio, 20/11/1995

29.8.06

novidade

HUGO: Já estamos quase em casa.
LIMBERG: Que bom, tô com fome.
GRIM: E eu tô louco pra tirar uma soneca.

= = =

Tenho sentido um estranho desejo
de brincar de boneca.
De vez em quando sinto de repente
o cheiro das margaridas amarelas da minha infância
e me dá uma vontade louca de chupar fruta no pé,
correr pelo quintal,
soltar pipa com os amiguinhos,
experimentar escondida a maquiagem da minha mãe
com o coração aos pulos na frente do espelho do quarto,
torcendo para ela não chegar antes da hora
e estragar a surpresa.
Vontade de enfeitar o cabelo com pregadeirinhas coloridas,
só pra ver como fica;
uma saudade danada de muitas coisas
que eu nunca tive.

E, depois desse tempo todo caminhando no escuro,
entre paredes de pedra úmida,
sinto no rosto essa aragem morna
que me anuncia um vasto campo para eu correr ao sol,
entre montanhas,
onde me esperam um riacho de águas frescas para eu matar a sede,
um cesto de piquenique (com direito a toalha xadrez e tudo)
para eu matar a fome,
um bando de amigos queridos para matar a saudade

– e onde, finalmente,
me darei à luz.

(Rio, 09/05/06)

ilustração: "hugo earheart"- jake parker (flight vol. 1)

crisálida


Ontem acordei de olhos baixos e retraídos,
espremidos de fotofobia.
Tinha a alma marejada de tanto luto
e não via um palmo adiante do nariz –
logo eu, que morro de medo do escuro.

Hoje já levantei um pouco mais leve.
Dei até um sorrisinho na janela
e não está doendo tanto respirar.

Ontem passei o dia com gosto de cabo de guarda-chuva na boca.
Estava mareada, o peito oprimido, a coluna amassada.

Hoje quando acordei fiz aquele alongamento básico,
dei uma espreguiçada legal na alma,
sacudi um pouco o pó do coração.

Ontem estava me sentindo tímida atrás das minhas sardas duras;
fiquei o tempo todo encolhida dentro da máscara,
disfarçada de sombra, até criar teia de aranha.

Hoje as juntas não estão rangendo tanto –
até cantarolei embaixo do chuveiro.
E, depois de não ter comido nada ontem o dia inteiro,
como hoje acordei com mais apetite
fiz panqueca da minha enxaqueca emocional
e comi no café da manhã.

Ontem a minha letra estava tão miúda
que mal dava pra enxergar.
Hoje ela está se esparramando toda:
quase não cabe no papel.
Pra falar a verdade, apesar dos tempos bicudos,
em comparação com ontem eu hoje estou quase esbugalhada.

Ontem eu queria ser um cachorro. Juro!

Eu ontem não estava com nada.
Me senti muito suja, esquisita, desgrenhada -
mas hoje estou bem melhor.

(Rio, 23 de setembro de 2002)

ilustração: "all the help i needed" - explodingdog

feminina


(infância)

(Acho que não sou muito mulher, não.
Às vezes, acho que não sou nada,
porque não sou a mesma coisa sempre.)

Sou uma mulher muito esquisita.
Mamãe sempre me disse que ser menina é diferente,
não brinca de coisa de menino.
Mas as brincadeiras do meu pai eram muito mais legais
do que fazer pose de bailarina o tempo todo
como a minha mãe queria.
Acabei achando mulher um troço muito chato:
não tenho vocação pra bonequinha de louça,
nem nunca gostei de cor-de-rosa.
Resolvi ser outra coisa
e deixar esse negócio de ser mulher pra lá,
que é muito enjoado.

(Meus peitos caíram muito cedo.
Acho até que quiseram se esconder dentro das calças, coitados,
e virar bagos
– afinal, ser menino é muito melhor;
menino não tem que ser mulher.)

Hoje sinto esta nostalgia. Sinto uma falta –

Fiquei muito séria, minha postura é encolhida,
como se tivesse alguma coisa a ver
com a minha menina perdida.
Queria saber onde ela está, brincar com ela...

(De vez em quando avisto uma ponta de vestido,
sinto um cheiro, ouço um risinho
e desconfio que ela está por perto.
Só não sei onde procurar – onde será?)

Eu quero ser mulher
mas não sei.

(Rio, 21-09-02)

modernidade

disse bem: "as pessoas têm blogs, orkuts, flogs e afins, e ainda insistem em negar seu exibicionismo. É tudo ego. Para as grandes verdades ou os poucos segredos já existe email."
deve ser pq hoje em dia ou a gente é famosa ou não é ninguém.

= = =

O padeiro

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"

E assobiava pelas escadas.

(Rubem Braga)

a sopa primordial

Há um ano, em setembro/2005, reencontrei por acaso este texto, que havia escrito em fevereiro de 2004 - quando eu estava começando a entender que estava em depressão há pelo menos três anos, e a reunir forças pra tentar sair dali. Engraçado que, quando comecei a (re)ler, demorei um tempão pra reconhecê-lo; eu não só não me lembrava, como achei que era de outra pessoa - talvez justamente por ser tão representativo do que eu passei e de como estava me sentindo.

Ontem quando acordei me dei conta de que estava olhando pra trás há tanto tempo que nem lembro quando foi que começou. Quanto tempo passei esperando alguma coisa que nunca veio, e lamentando tudo o que tinha sido. Fiquei durante anos perdida num pântano gelado e fedorento, me arrastando, com a água ora nos joelhos, ora nas coxas, ora no pescoço, rodando, dando voltas sem perceber nem ir a lugar nenhum.
E as partes do meu corpo que estavam dentro d’água era como se se diluíssem nela, e eu deixava de senti-las... e o ar que eu respirava era úmido e denso e carregado de odores e miasmas, e respirar era tão difícil e abafado.
Ô coisa mais penosa.
Meu homeopata me perguntou no outro dia qual era a minha natureza. Falei da sensação que vinha me perseguindo há meses, de estar imersa numa água fria, gelada, escura (mas pelo menos limpa!). Em algum momento ele usou a palavra melancólica pra falar de mim, e pronto: me ficou que a minha natureza é, ou ainda está sendo, melancólica, meaning molhada.
É esse muco todo que ele explicou que me inunda, se acomoda na minha garganta e me vem do estômago quando fico ansiosa e/porque penso demais. Ou quando tomo gelados. Quer dizer, eu sou fria e úmida por dentro, o meu muco é a lama e os miasmas do meu pântano.
Pois então: o meu pântano era todo ocre e musguento. O ar era uma neblina espessa que filtrava a luz, criando uma claridade difusa e amarelada que fazia qualquer um duvidar da própria existência do sol. Nunca dava pra saber onde ele estava – nem se ele estava lá mesmo, antes de mais nada.
A Mãe era uma lama pegajosa, devoradora, movediça, e o Pai era o céu baixo, o ar grosso - ao mesmo tempo distante, irreal, imaterial, e permeante, presente, invasivo mesmo. Úmido, também ele, aliás. (E ambos inconstantes. Não dava pra confiar em Pais assim.) Ora, o ar era pra ser leve e fino e aberto e dar vontade de voar, e a terra, sólida, firme, concreta, e dar vontade de andar, de correr. Mas nesse lugar sem horizontes nem rumos nem caminhos tudo era líquido e estéril por sufocamento e excesso, e desolação. O que devia ser liberdade era prisão, masmorra, catacumba.
Raiva? Não, eu não sei sentir raiva. Não que não sinta, nada disso; é que a raiva me dá culpa e medo. Quando ela me vem, eu destruo e ponho tudo a perder, e fico sozinha. Ou pelo menos é disso que eu tenho medo.
(Quer dizer, um puta complexo de onipotência, prato cheio pra qualquer analista.)
Uma menina zangada era uma menina má, muito má. E quem se zangava comigo, era ruim também, então? Ou a minha raiva conjurava monstros pra me castigar e me destruir, ou eu estava cercada de monstros incoerentes, mesmo.
E no entanto a raiva, como uma lâmina em brasa, ia dividir o céu e a terra, pra começar. Mas tudo o que eu sei sentir é um aperto no peito, um abafamento, que eu chamo de angústia. E que me sufoca. Só o que eu sinto – e que me conforta na sua familiaridade – é essa falta de ar. Falta de ar me dá a reconfortante sensação de lugares fechados, espremidos; e as prisões são os lugares mais seguros do mundo, ou não são?
Tsc, não importa: Papai e Mamãe são devoradores, sufocantes, úmidos, movediços. São o meu pântano e os meus descaminhos, e não consigo nem sentir minha raiva deles em toda a sua plenitude.
(Um pouco de raiva seria tão libertador agora, mas eu ainda tenho tanto medo de ser livre. A sorte é que a liberdade está sendo cada vez mais necessária. A cada passo, sinto que as águas baixam mais um pouco e avanço um bocadinho mais em direção à terra firme.
O chão, pouco a pouco, vai ficando cada vez mais sólido. Logo vão começar a brotar aquelas gigantescas samambaias pré-históricas.)